Anahí
Foram dias, semanas e longas tardes de solidão. Eu estava reclusa, isolada no meu mundo superficial e rotineiro. Mesmo que soasse entranho, já fazia muito tempo que eu não trabalhava como costuma ser. Na boate, não fiz nada além de meros shows dançantes para exibir o corpo ao público masculino. Lessa não estava contente com essa mudança, talvez nem eu mesma estivesse.
Era angustiante pensar que eu não queria deitar com mais nem um homem. Era apenas por um tempo, decidi que seria temporário. Eu não estava bem.
Minha apatia não podia durar por mais uma semana, ou eu estaria falida em pouco tempo. Dulce não me fez perguntas como de costume. Ela apenas andava de um lado ao outro da casa, fingindo que não notava as minhas mais recentes atitudes. Quando tínhamos oportunidade, as noites de meninas eram regadas de muito chocolate e filmes besteirol.
Nós também costumávamos conversar sobre a ansiedade dela com o novo emprego e com o fato de se mudar para outro lugar.
Algumas vezes durante essas noites meu telefone tocava incessantemente, notificando as ligações de Ricardo. Mesmo que eu as rejeitasse ele simplesmente não desistia. Então me obriguei a tomar uma decisão final. Colocá-lo na lista negra.
Sentadas no chão da sala, minha amiga eufórica e eu buscávamos mais algumas opções de filmes para assistir aquela noite.
- Devíamos mudar nosso roteiro hoje.
- O que sugere?
- Um documentário!
- O que tem de melhor nisso?
- Deixe de ser chata, Anahí. Precisamos de informação.
- A intenção dessas noitadas é nos divertimos.
- E vamos! Para de reclamar e assiste antes de julgar a minha ideia.
Ela segurava o controle frente a TV, passando por várias opções do gênero. Era chato demais esperar que ela se escolhesse. Dulce era muito indecisa. Demorava horas para escolher o que queria, fosse o que fosse, ela sempre fazia toda aquela delonga antes de tomar decisões.
Eu pelo contrário era mais ágil com tudo, inclusive em um assunto como aquele.
Com um gritinho vitorioso ela saltou e disse ter encontrado o que tanto procurava. Dei as ordens para ela apertar o play de uma vez e assim ela fez.
A primeira imagem que surgiu na tela foi a de uma menina esguia, sentada sobre um solo rachado e de terra vermelha, sendo exibida pela voz de uma jornalista. Ela estava bastante desidratada e com os ossos das costelas visíveis, tanto que era possível contá-las sem perder a fidelidade.
O seu rosto era inexpressivo, sem dor, mesmo que eu tivesse certeza de que ela sofria por estar ali cercada de horror. Não consegui entender como alguém naquele estado ainda conseguiria respirar ou continuar vivo. Ao seu redor estavam mais duas crianças, iguais tanto na aparência quanto nos semblantes vagos.
Meus joelhos se retraíram contra o meu corpo e me deram uma única certeza. Eu nunca esqueceria aquela imagem.
Dulce não notou meu estado de choque porque estava da mesma forma, mas ao oposto de mim, ela lacrimejava, se sentindo tão miserável quanto eu.
A campainha da porta tocou e espantou as duas. Eu não quis interromper o momento dela me prontificando para ir até lá. Suspeitei que pudesse ser o porteiro chegando àquela hora para trazer as contas mensais do condomínio.
Ele sempre escolhia as horas erradas para fazer isso.
Quando puxei a maçaneta minha face se enrubesceu, mas de pleno susto. Matias estava imóvel como uma estátua, usando mais um dos seus muitos casacos pretos, igual um mensageiro da morte. Revirei os olhos e apostei em fechar a porta na sua cara, mas ele pôs o pé impedindo minha ação.
- Não quero vê-lo, Matias - o homem arregalou os olhos como se estivesse surpreso.
Não sei se era pelo fato de eu saber o porquê dele estar ali ou por ainda lembrar seu nome.
- Senhorita, me perdoe, mas tenho que levá-la.
Dei uma risada em alto e bom som, o mais irônica que pude parecer, para deixar claro que eu tinha livre arbítrio. Uma coisa que Lafaiete devia ter esquecido com o tempo.
- Sinto muito, mas diga ao seu patrão que eu ja sou bem grandinha para tomar decisões.
Ele ficou calado e de cabeça baixa como um cachorro arrependido. Foi inusitado ver aquele homem tão gigante e forte se abater como um menino largado.
- O senhor Lafaiete vai me demitir se eu não fizer isso.
Então era esse o ponto. Parece que o bandido da R. Dress sabia como me comover. E usou seu motorista pra isso. Tirei a mão da maçaneta e me ergui com postura.
- Por quê?
- Essa foi à condição. Ele me exigiu que eu o trouxesse até aqui e eu neguei. A senhorita sempre me pediu sigilo sobre isso e eu respeito. Se não levá-la agora vou perder o emprego, e preciso muito dele. - Suplicou assustado.
Soltei o ar dos pulmões, extremamente estressada com nível em que Ricardo havia descido chegar só para me ver e ter o controle de tudo. Mas uma coisa era certa, Matias tinha sido um cavalheiro em resguardar meu segredo daquela maneira.
Porque se Ricardo aparecesse ali, aí sim eu ficaria bem mais irritada.
Ajuda-lo era o mínimo dos favores que eu poderia fazer.
Pedi um segundo e fui até meu quarto tirar a roupa de dormir e colocar uma coisa mais apropriada.
Avisei Dulce sobre o que havia acontecido e prontamente ela compreendeu, apertando minha mão para desejar boa sorte. Ela também me pediu para deixar o telefone sempre perto, caso precisasse de uma carona imediata.
O Trajeto foi sombrio. Ambos ficamos neutros, e mesmo que estivesse amedrontado o motorista manteve sua postura de empregado fiel. Olhei através da janela refletindo sobre o quanto aquelas pessoas que trafegavam, talvez vindas dos seus trabalhos ou de bares em plena sexta-feira, pareciam felizes.
- Obrigada - falei baixo, ainda olhando para fora. Esperei que ele ouvisse, e por sorte isso aconteceu.
- Não se preocupe, senhorita.
- Me preocupo sim. Você fez uma boa ação comigo e eu lhe devo isso.
- Como desejar - ele recebeu aquilo mais como uma ordem do que de coração aberto.
Aquele tipo de homem eram adestrados de uma maneira que nem quis tentar compreender. Me cansava demais.
Desci do carro assim que cheguei ao estacionamento para ir até os elevadores, mas para a minha surpresa Ricardo já estava lá. Esperando com os pés inquietos.
- Muito bem - Ele batia uma curta palma gloriosa para o empregado que já havia readmitido a postura firme de sempre - Decidi esperar bem aqui para me certificar se faria o que mandei, caso contrário ia demiti-lo antes se descer.
- Você é ridículo - retruquei esbarrando no seu ombro para entrar por trás da porta do elevador.
Ele me seguiu com um sorriso sarcástico e autoritário, apertando no botão do nosso andar.
- Bela atitude a sua. Deve gostar desse motorista - virei minha vista até ele, somente para confirmar a segunda intenção daquela frase.
- Há quanto tempo você acha que ele me leva para casa? - perguntei - Aquele homem merece meu esforço.
- Não me olhe dessa forma, eu sei que ele não faz seu tipo, meu amor. Só perguntei por curiosidade. Matias se negou avidamente a dizer onde você mora.
- Talvez porque sejamos amigos. De certa forma somos.
A porta se abriu e eu andei pelo corredor, habituada com o caminho, sendo seguida pelo admirador irritante. Tentei manter nossa distância até onde não fosse mais possível. Como dentro do apartamento o clima estava agradável e aconchegante, sem o frio das ruas, retirei meu casaco e o segurei nas mãos.
Lá não havia cabide na entrada.
Minha costa esquentou assim que recebeu o toque da mão de Lafaiete, depositado sobre o decote do vestido.
- Percebe como me instiga? - ressoou baixo - Exibe sua pele mesmo me pedindo para ficar distante. Como posso ficar longe dessa forma?
- Não vou mudar minhas roupas apenas por sua falta de autocontrole com mulheres - Rebati afastado-me e andando devagar até a sala de estar que eu conhecia.
Ele continuou a me seguir.
- Apenas você me tira o controle - afirmou, apertando a beira no sofá como se desejasse fazer aquilo em algum dos meus braços.
- Ainda não me disse o que quer comigo - tentei mudar o assunto - Já estou na sua casa como pediu, agora diga.
- Quero você.
- Eu sou uma vagabunda, ou se esqueceu disso? Você mesmo quem disse. Porque quer algo comigo?
- Por favor, pare com essa cena deprimente de dramaturgia. Somos melhores que isso.
- Não, eu sou bem pior que isso. - Repeli - Como imaginei, não passa de caprichos seus. Posso ir embora agora?
Quando ouviu a minha ideia, Lafaiete apressou os passos e chegou até mim, segurando meu corpo como sempre fazia. Poderosamente. Não tive como sair daquela imobilização, decidindo manter a pose ao invés de me debater como uma garota frágil. Nossos olhares foram trocados igual duas espadas afiadas.
Ele me rendeu e virou meu rosto, enterrando sua boca no meu pescoço, sugando aquele lugar e inspirando meu perfume como um louco embebedado. Mordi a boca e segurei o gemido involuntário que teimava em sair.
O que eu podia fazer? Corpo é corpo. Somos guiados por desejos, mesmo que isso nos incomode.
Mesmo assim eu estava disposta a ser forte e renegar, caso contrário, Ricardo ainda seria uma pedra no meu sapato. Mesmo que fosse uma maldita e gostosa pedra.
- Você é rico meu bem. - falei tirando sua atenção - Pode ter a mulher que quiser em seus pés basta escolher. Me deixe ir.
Ele desenterrou o rosto do meu ombro e segurou-me com as duas mãos, mais pesado que antes.
- Sei que posso, Madness, mas é isso que me aborrece. Você mesmo sendo uma garota de programa, não me deixou corrompê-la! Eu quero que fique apenas comigo!
Quando meus olhos se arregalaram temendo o que viria em seguida, fui resgatada pela campainha da casa. Ele praguejou e gritou de onde estávamos ainda com as mãos sobre mim.
Como reposta a voz masculina ressoou nos corredores em um eco terrificante.
- Sou eu, Alfonso.
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