Anahí
Minha cabeça pulsava, carregando os vestígios da noite anterior. Ricardo dormia no quarto ao lado do que eu estava. Nós não tínhamos a hábito de dormir juntos, era mais uma das minhas regras.
Dividir a cama além do ato sexual não parecia interessante. Com o tempo tudo podia ser interpretado de forma excessiva.
Após realizar todas as higienes matinais, retornei ao quarto sendo fisgada imediatamente pela sacola marrom que estava sobre a poltrona. Dentro, havia uma roupa separada exclusivamente para mim. Era um vestido básico, mas muito bonito. Ricardo teria feito aquilo, óbvio.
Na etiqueta tinha o nome da sua marca estampada com letras douradas.
Me vesti e fiz uma maquiagem simples. Em cima da penteadeira do banheiro tinha tudo o que eu costumava usar, e algumas coisas a mais. Aquele homem sempre foi caprichoso e atento aos mínimos detalhes. Sabia como cativar e cuidar de uma mulher
Sai pronta para ir embora quando dei cara com ele na sala, com as pernas cruzadas. Nas suas mãos havia um jornal que ele fez questão de fechar assim que me viu parada perto da luminária. Parecia a despedida diária de um casal qualquer.
- Dormiu bem?
- Dormi. Obrigada - disse aliviada - Agora preciso ir. Dulce deve estar me esperando.
- Planejaram alguma coisa para esta manhã?
- Nada em especial. Temos apenas que ir até a boate organizar algumas coisas para a noite.
Ele se elevou prontamente, jogando o papel acinzentado para longe. Totalmente amassado pelas suas mãos.
Vindo na minha direção Ricardo apertava os olhos vermelhos como fogo.
- Odeio esse seu emprego de merda! - Apertei os olhos preparada para mais uma guerra de julgamentos.
- Você vai me afastar se continuar a tocar no mesmo assunto toda vez que estivermos juntos.
- Venha comigo a um lugar - Rebateu estratégico, mudando o foco da conversa.
- Ricardo, já está tarde.
- Juro que será rápido, e assim que terminar eu mando o motorista levar você.
Não queira ir, mas acabei cedendo às súplicas insistentes dele.
Nada daquilo estaria nas minhas expectativas, muito menos sequer imaginei que o tal lugar fosse a sua empresa. Ali estava cercado de mulheres altas e elegantes, parecendo um mostruário. Todas sorriam automaticamente quando passávamos, mesmo sendo ignoradas por ele, o que não me parecia agradável. Tentei retribuir os sorrisos, mas não pareceu que minha aprovação fizesse alguma diferença.
Fui conduzida até o andar mais alto, parando no seu escritório. Deduzi isso ao ler seu nome na porta.
Aquele cômodo tinha uma paisagem privilegiada de toda a Milão e seus bairros. Me prendi por um tempo admirando a vista enquanto ele finalizava algumas assinaturas deixadas em uma pilha de papéis
- Ainda não me disse porque me trouxe aqui - Indaguei vendo o tempo passar e a minha manhã se perder.
- Quero te oferecer um emprego.
Aquelas palavras me tiraram o gosto do cappuccino servido a alguns minutos atrás. Ele me pegou desprevenida, jamais imaginei que Ricardo faria um convite daqueles. A princípio pareceu tentador, mas eu sabia bem quais eram as finalidades da proposta.
Ele me teria ao seu lado mesmo que de forma indireta.
Dei uma risada como se ele acabasse de me contar a piada mais engraçada, e ao contrário de mim, ele não pareceu feliz.
- Não acho uma boa ideia - Respondi em justificativa.
- Se aceitar, não vai mais precisar trabalhar naquele lugar.
- Eu gosto de lá - Aquilo era mentira, porém não estava com paciência de explicar que o que realmente gostava era da sensação que o palco e os olhares me provocavam.
- Não acredito - pausou - Você quer me deixar louco!
- É melhor eu ir. Sinto que esta conversa não terminará nada bem.
Quis pegar minha bolsa e sair de forma civilizada, mas aquilo estava longe de ser o que previ.
Ricardo me impediu antes que eu chegasse à porta, segurando meus braços com a ferocidade que me recordava nossas noites de sexo, agressivas. Sempre saímos machucados ou com hematomas por toda parte. Mas aquilo não era sexo e nem estávamos sobre uma cama ou qualquer outra coisa.
Estávamos na sala dele, eu com o semblante pasmo e ele com toda a sua exaltação exibida igual um espetáculo.
- O que isso significa para você? Fale de uma vez!
- Deixe de agir feito um imbecil!
- E você pare de agir feito uma prostituta vagabunda e debochada!
Minha mão queimou pelo tapa que havia acabado de dar em Ricardo. Sim. Senti a mesma dor que ele. Talvez eu merecesse. Não existiria outra maneira de calar a sua infeliz boca naquele momento. Ele parecia impulsivo, diferente do homem prudente de sempre.
Segurando o rosto Ricardo me observava silenciado pela minha atitude, mas escondido no seu olhar era possível perceber que segurava sua fúria, contendo alguma reação imprópria contra mim.
- Não fiz isso para defender uma honra que não tenho, - expliquei serrando os dentes - mas sim para deixar claro que a partir desse instante você nunca mais vai tocar no corpo dessa 'prostituta vagabunda' outra vez.
- Madness...
- Cala a merda da boca! - Gritei interrompendo o que quer que ele ansiasse me dizer.
Juntei a bolsa que havia caído no chão durante a discussão, girando a maçaneta para abrir a porta e sair. Puxei ela antes que Ricardo decidisse me impedir mais uma vez.
Uma lágrima de aversão brotou nos meus olhos enquanto andava até o banheiro puxando o celular e discando meu número de emergência. A limpei imediatamente, antes que Dulce atendesse a chamada.
- Onde você está sua maluca? - A morena iniciou a conversa antes mesmo de eu pensar no que queria dizer.
- Dulce, por favor, preciso que pegue meu carro e venha me buscar agora na, R. Dress.
- O que aconteceu, Anny?
A voz carinhosa dela me deixou mais sensível. Dulce sabia que aquele tipo de súplica estava longe de ser comum. Eu nunca pedi algo parecido, já que em todos os anos em que estive com Ricardo sempre voltava para casa com um dos seus motoristas.
- Apenas faça o que pedi. Quando chegar em casa conversamos.
- Claro. Já estou descendo o elevador agora.
Aliviada por ouvir que ela não tardaria em chegar, andei até o corredor sem se quer olhar para os lados. A minha única e exclusiva concentração estaria em conter mais uma lágrima inconveniente que queria aparecer. Abafar aquele choro me sufocava.
Mas foi aí que tudo piorou.
Não sei como, mas existia alguém parado no meio do meu caminho e isso fez o choque ser praticamente impossível de impedir. Meu celular caiu com tanta velocidade que tive quase certeza de que teria que trocar a tela. A única coisa que pensei foi em pedir desculpas e me esconder. Ninguém pode me ver assim!
E mais uma vez foi inevitável.
Nós dois nos abaixamos e tentamos juntar os restos do aparelho celular, e nisso, nossas mãos se tocaram juntos dos nossos olhares cruzados. Maldita hora em que decidi olhar.
Aqueles olhos esverdeados pareciam duas safiras, das mais nobres. O rosto era familiar, e em alguns segundos entendi que se tratava do homem da noite anterior. O mesmo que estava ao lado de Ricardo durante o desfile. Meu coração pulsou atrevido, e eu recuei. Ele também me olhava em silêncio, como se fizesse a mesma crítica. Uma apreciação detalhada.
Fomos rápidos, mas ele foi quem ficou com o celular nas mãos. Percebendo que já havíamos passado alguns segundos apenas trocando olhares, se levantou e me entregou aparelho quebrado. Recebi, retribuindo um sorriso automático.
- Você está bem?
Ele perguntou preocupado. Era uma bela voz. Não tão aguda como deveria, mas tinha uma sonoridade confortável.
Gostaria de ficar mais um tempo ali, mas o motivo da minha pressa era maior. Poderia até parecer indelicadeza, porem o tempo não estava a meu favor naquele momento. Eu não poderia demorar ou a probabilidade de Lafaiete evitar minha saída com certeza ia aumentar.
- Desculpe, tenho que ir.
Pus o celular na bolsa e caminhei o mais acelerado que pude para longe dele. Deu para ouvir sua voz me pedindo para esperar, mas aquilo estava fora de cogitação.
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