[12] Bailarina.

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Como o mais novo habitual, acordo bem cedo para ir para o colégio sem me atrasar e precisar ser chamado a atenção novamente.
Teremos uma professora nova, até onde sei. Estranhamente, ela será professora de duas materias: Literatura e Inglês, então ela irá passar muito tempo com a gente. Parece que a antiga professora transou com um aluno do terceiro ano e a ex-namorada do cara contou a diretora, o que fez com que ela fosse demitida... e talvez até seja presa. Sendo assim, aqui estamos nós.
 
— Como foi o treino ontem, querido? — Tori diz assim que me sento à mesa.
 
— Foi bom. — Sorrio. — Hum, vocês viram que eu trouxe dois gatos para casa? Eu os achei na estrada em uma caixa abandonada e quis trazer para a Nina. Vocês se importam? — Digo simplesmente enquanto me inclino para pegar pão.
 
— Contanto que seja você a cuidar e não mantenha a casa uma bagunça, eu não me importo. — Tori sorri e bebe um pouco do seu café numa xícara de porcelana. — Quer que eu deixe dinheiro para levá-los ao veterinário?
 
— Seria bom. — Assinto com um meio sorriso.
 
— Pode acordar Nina? Ela ainda não levantou, eu acho. Deve ter dormido tarde lendo os livros novos.— Cody diz.
 
— Ela acordou, sim. Ela só está treinando, lembra? Hoje é terça e ela tem sua primeira aula de ballet em muito tempo. — Tori o responde.
 
— Ah, é! — Cody diz, recobrando a memória. — Mas chame-a ou ela irá se atrasar.
 
— Sim. — Dou os ombros. — Aliás, eu conheci a Margot e ela é bem legal.
 
— Ela é um foda. — Tori diz com um sorriso brilhante.
   
 
Subo as escadas em direção ao quarto de Nina e consigo ouvir um barulho não muito alto de um fundo musical apenas em instrumental.
Pela frecha da porta, a vejo. Ela está de calça jeans e molet, com as sapatilhas de ponta de cetim salmão em seus pés pequenos. Ela gira vezes incontáveis, sem oscilar, sem parar, sem se cansar. Ela salta no ar da maneira mais extraordinária possível, com a leveza de uma pena. Nina parece liberar toda a dor dançando ao som dessa música.

Existem pessoas que gritam enquanto escrevem, outras que gritam enquanto se calam, algumas que gritam enquanto fazem algum esporte, até mesmo as que gritam enquanto bebem. Outras gritam enquanto lêem, mas a Nina... Ah, a Nina grita enquanto dança. Todas as palavras que ela guarda, todos os gritos presos em sua garganta, são soltos através disso. A forma como ela se move, como seu corpo reage à meolodia, o jeito como ela fecha seus olhos com força... esse é o grito dela. Ela não precisa de palavras para expressar o que sente, porque não é difícil de se entender quando se vê algo assim.
 
Lembro-me automaticamente de uma vez, quando minha era viva, dela canto da sala de casa, me pondo em seu colo e recitando uma espécie de texto que ela disse ouvir em alguma aula da faculdade que serviu de inspiração para vários desenhos de bailarina seus.

"Se imagine sendo uma moça, uma bailarina. Uma bailarina sozinha, que dança uma valsa solitária. Ela gira, dança e pula, olha pro público vê casais, olha pra si e não tem paz. É impróprio dançar só? A procura de ser um casal? Ela rodava, girava e pulava, e o único holofote era o que lhe destacava, sozinha por si mesmo, se julgando amada, sem um par. Dançava, girava e pulava, sozinha, a música triste que no final morria, teu coração sozinho, já dançava só faz tempo, e a bailarina não era aclamada, não recebeu palmas. E os súditos gritavam: Quero uma bailarina de verdade, e a bailarina retrucava: Quero deixar de ser metade.", ela disse. Eu sorri, mas naquela época, não entendi. E agora, olhando para Nina, eu entendo.
 
— Nina? — Digo assim que a música acaba e ela respira fundo, olhando para o chão. — Isso foi... Deus, foi incrível. —  Confesso, sem ar.
 
Seus olhos se arregalam e seu rosto cora. Ela para a música que está por seguir em seu celular e suspiro, encostando-me no portal de madeira.
 
— Você é muito boa. Não tem que se envergonhar. — Sorrio. Ela assente.

Nina encara os pés, aparentemente ansiosa.
 
— Sua... sua mãe pediu para você descer. — Digo, ainda pasmo.

Nina assente e se inclina para tirar as sapatilhas. Ela mexe a cabeça e eu tenho certeza de que ela quer que eu suma dali, mas não dá. Não consigo. Meus pés estão cravados no chão como as raízes de uma árvore.
 
Nina calça seu tênis desgastado, pega sua bolsa e passa por mim, seguindo pelo corredor. Eu fico sozinho, ainda embasbacado.

O Silêncio Entre Nós Onde as histórias ganham vida. Descobre agora