Eu sempre acreditei que não tinha vocação para cuidar de alguém. Afinal de contas, paciência e destreza nunca foram os meus pontos fortes. Porém, sempre fiz o meu melhor quando a situação me exigia isso, por exemplo, como agora. Sobretudo quando se trata de cuidar das pessoas que eu amo, e por Sofya, ainda mais.
E é exatamente por essa razão que estou colocando o meu lado cuidadora em ação.
Embora os meus dotes culinários não sejam muito bons, preparo uma canja de galinha bem caprichada, com direito a pedacinhos de legumes e frango. Assim como a receita indica, deixo o caldo ferver um pouco mais para engrossar e aproveito esse tempinho para dar as vitaminas que o médico indicou para Sofya depois que foi liberada.
Pego o frasco sobre o balcão e um copo com água.
– 'Tá na hora do remediiiiiinhoooooo!! – grito, erguendo as mãos para mostrar a minha amiga deitada no sofá.
Geralmente eu não sou a animada e sim a chata e resmungona, mas quero alegrar a Sofya e não me incomodo de tomar o seu lugar por uns dias; ela sorri e levanta devagar, até estar apoiada no encosto do móvel, ainda envolta por sua manta favorita.
– São vitaminas, sua boba. – diz.
– Tem forma de remédio, está em um frasco tipo de remédio e provavelmente tem gosto de remédio. Ou seja...
– Me dá logo esse treco!
Ponho uma das cápsulas gelatinosas em sua mão, a qual leva a boca e engole com ajuda da água. Sento ao seu lado depois de largar o copo sobre a mesinha de centro, lembrando-me de ficar atenta a panela no fogo. O sorriso que antes enfeitava o meu rosto se vai, assim como o seu.
– Você está bem? – pergunto, mesmo sabendo a resposta.
– Apesar dos pesares, sim. Estou bem melhor.
Solta um suspiro e junta os joelhos contra o peito, abraçando-os. Olho para a TV, onde passa um programa qualquer e ficamos as duas em silêncio por um instante.
– Sabe que não pode esconder isso para sempre, não é?! – me pronuncio.
– Ainda que eu queira fingir, sei que não.
– E quando pretende...
– Não sei! – corta-me, aflita – Tenho pensado nisso desde que sai do hospital. Na verdade, desde que recebi a notícia. Mas, mesmo que eu pense e pense, me vejo perdida no mesmo lugar.
Agora sou eu quem solta um longo e profundo suspiro. Não faço ideia do que dizer. Apesar de eu defender a ideia de que deve logo falar e fazer o certo, tenho consciência de que não é tão fácil quanto parece, especialmente porque o cenário está longe de ser dos mais favoráveis para ela.
Quer dizer, para ambos.
Se o que me contou for verdade, isso vai ser uma bomba - se bem que, seria uma bomba de qualquer maneira. A questão agora é: quando ela será detonada.
Nós nos encaramos e noto um relampejo de medo passar por seus olhos. Por mais que esteja "lidando bem" com tudo o que está acontecendo, sei que no fundo tem medo e eu não posso culpá-la. Se eu estivesse em seu lugar, com certeza já teria surtado. Só por receber aquela notícia, acho que teria provocado um escândalo.
Somente imaginar me causa calafrios.
– Seja qual for a sua decisão, saiba que estarei com você. – digo, tocando os seus cabelos - Pode contar comigo, independente para o que seja.
– Eu sei, amiga. Obrigada!
Sofya deita no meu colo e eu continuo lhe dando carinho, isso até um cheiro de queimado me fazer levantar num pulo e correr desesperadamente em direção ao fogão.
Apesar do susto, consigo salvar a canja. Sirvo dois pratos, um para mim e outro mais caprichado para Soso, e me junto a ela no sofá novamente.
Jantamos assistindo a reprise de um programa chamado We Got Married e, pela primeira vez, compartilhando mais do que um momento tão comum para nós ou nossos problemas amorosos, que agora aparentam ser bobos.
Como há algum tempo não acontecia, nos deitamos juntas em sua cama e nos abraçamos. Algo que fazíamos muito quando estávamos mal e, mesmo que não seja necessariamente ruim o que se passa, sei que o que mais a Sofya precisa agora é de conforto e muito, muito cafuné.
Se o médico não tivesse restringido à sua dieta para apenas alimentos saudáveis, uma boa dose de porcarias doces também.
Na penumbra do seu quarto, permanecemos enroscadas uma a outra, à medida em que eu lhe faço carinho. Mesmo que não seja do nosso feitio, ficamos em silêncio.
– Você está feliz? – indago minutos depois, sem conter minha curiosidade. E, mais uma vez, já sabendo a resposta.
Ela permanece quieta, mas ouço o seu riso emocionado, seguido por lágrimas teimosas que escapam e molham a blusa do meu pijama. Seu coração está acelerado.
– Muito!
Eu sorrio, também emocionada. Se ela está feliz, eu estou feliz. É o que importa.
– E você, está feliz? – devolve a pergunta.
– Mais do que você possa imaginar.
– Sei que pode parecer sem sentido agora, mas, por que decidiu perdoar o Noah? Bom, eu sei que você o ama e isso já é motivo o bastante, só que...
– Apesar de muitas vezes eu não o enxergar dessa maneira, a verdade é que o Noah ainda é um garoto de dezoito anos. Como eu posso culpá-lo por errar? Todos nós erramos, especialmente quando somos jovens. Ele não fez por mal, apenas... Quis proteger a amizade dele com a pessoa que o ajudou no momento mais difícil e deu no que deu. Além disso, o próprio Joshua tinha um motivo forte para agir como agiu.
Deito de lado, ficando de frente para a minha amiga. Ela faz o mesmo.
– Eu seria muito cruel se não perdoasse os dois, e seria muito burra em deixar que isso me afastasse do Noah. Eu o amo demais e não poderia estar mais feliz por tê-lo perdoado e trazido de volta para a minha vida.
Manu me abraça e murmura:
– Você fez a escolha certa.
Eu sei que fiz. Nós duas fizemos as escolhas certas.
Acordo mais cedo que o de costume, encolhida no canto do colchão, enquanto minha amiga toma todo o espaço esparramada entre os lençóis e ronca como um velho.
Sentindo todos os ossos estalando, levanto e deixo que a minha amiga durma mais um pouco e sigo para o meu quarto, a fim de começar a me arrumar para o trabalho.
Assim que estou pronta, vou à luta na cozinha. Pego os ingredientes que Bailey comprou no sábado seguindo a lista dada na alta da Sofya do hospital e ponho-me a preparar um café da manhã balanceado.
Frutas, legumes e verduras enchem a nossa geladeira e estou me preparando mentalmente para encarar esse mundo verde pelos próximos meses.
Ainda que me doa muito, ignoro o pote de café quase implorando para que eu o pegue e espremo algumas laranjas para fazer um suco. Tudo bem que eu posso tomar uma caneca, mas seria injusto, uma vez que Sofya não pode. Então vou de suco também, posso beber o meu precioso café quando chegar ao colégio, assim me sentirei menos culpada já que a minha amiga não estará por perto.
Pois é como dizem: o que os olhos não veem, o coração não sente.
– Bom dia! – ouço sua voz arrastada soar da porta – Caiu da cama?
– Se dependesse de você, teria caído mesmo. Tinha esquecido como você é espaçosa. – coloco a jarra cheia sobre o balcão e a encaro – Ah! E folgada também.
– Minha cama, minhas regras. – desdenha, sentando em uma das banquetas.
– Tenho até pena do Bailey. É sério.
Sofya dá uma risadinha, embora a preocupação ainda seja evidente em suas expressões e está claro que só desaparecerá assim que as coisas forem resolvidas.
Começamos a comer em silêncio e eu tomo esse momento para analisá-la. Seus
cabelos estão alvoroçados e suas olheiras continuam um pouco fundas, mas a cor em seu rosto está muito melhor. Mais corada e seu humor mais animado, apesar dos pesares, como ela mesma disse ontem.
O que me deixa verdadeiramente aliviada.
Aos poucos, está se recuperando.
– Pretende ir ao estúdio de dança hoje? – pergunto.
– Sim, preciso falar com o meu chefe.
Olha para o copo com suco de laranja (e cenoura, deliberadamente ralada e escondida) e torce o nariz. Dou risada. Está na cara que prefere uma bela caneca de café fumegante, mas ambas sabemos que agora não é possível. E por um bom tempo não será.
– Você não pretende dar aulas, não é?! Lembre-se do que o médico disse.
– Eu lembro, não precisa ficar repetindo. – dá um gole no suco e me fuzila com o olhar – Você botou cenoura aqui, né?!
Solto uma gargalhada que, por um triz, não me faz engasgar com o pão. Ok, meu plano não funcionou. E eu sei, do fundo do coração, como ela odeia cenoura.
Dou de ombros para a sua acusação e volto a comer quando consigo controlar o aceso de risos. Sofya solta um suspiro contrariado e se força a beber mais.
– O problema é que a apresentação está próxima e não sei como vamos fazer.
– Os outros professores não podem pegar a sua turma?
– A coreografia está pronta e os alunos estão apenas repassando. Na verdade, eu não tenho que dançar. Essas próximas aulas seriam para supervisioná-los.
– Eu conheço você, Sofya. Não consegue parar quieta quando o assunto é dança.
– Admito que vai ser difícil nos primeiros dias, mas acho que também posso lidar com isso. Estou lidando com tantas coisas, essa vai ser fichinha... Eu acho.
– Bom, é somente por algumas semanas, até que possa se recuperar e não ter possibilidades de riscos. Alimente-se bem e descanse, como o médico disse.
– Sabe, até parece que o médico é você. – debocha, dando uma mordida enorme na torrada lotada de Nutella. Quando foi que ela pegou esse pote que eu não vi?
– Acho que eu deveria simplesmente abrir mão, então.
– Claru tchi nãum! – exclama com a boca cheia, quase cuspindo uns pedaços de pão para fora, que pegariam em cheio na minha cara – Contchinue cuidando de mim.
Reviro os olhos e sorrio. Sinto é que teremos trabalho em dobro.
Indo contra toda a nossa rotina, sou eu quem deixa Sofya no serviço e parto para o meu. Em vinte minutos, estaciono o Hyundai i15 verde em uma das vagas do colégio e salto do carro com as pastas e a bolsa nas mãos.