Capítulo XXV

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Reino das Astúrias — Primavera, Junho de 835 d.C.

Juan trotava imerso em seus pensamentos, ao se aproximar do acampamento na noite anterior para pegar sua ceia percebera Jamila sentada em um tronco, se aquecendo ao fogo. Ela usava um manto pesado por cima de sua túnica berbere que entreviu, seus cabelos estavam escondidos debaixo de um véu, percebeu que seus olhos estavam pintados, mas desviou o olhar antes que ela percebesse.

Sentiu um frêmito em todo corpo, seu coração disparou e seu sangue pareceu ferver, zumbindo violentamente em seus ouvidos. Sua vontade fora se aproximar e arrebata-la, para então fugirem para longe da Hispânia, mas se controlara e após pegar sua ceia voltou para a escuridão da noite, onde, após comer sem apetite tentou inutilmente dormir.

Passou a noite em claro se torturando, sabendo que o objeto de seu amor e desejo estava tão perto e tão longe ao mesmo tempo. Ao amanhecer tomou posição na vanguarda, enquanto pudesse evitar ficaria o mais longe possível dela.

Ouviu o galope de uma montaria que o retirou de seus devaneios e ao olhar por cima dos ombros a avistou se aproximando, ela deteve seu cavalo ao lado dele.

— Juan - cumprimentou-o com sua voz musical.

— Irmão, vou avançar um pouco mais - disse irmão Rafael ao seu lado e se afastou a galope.

— Minha senhora Jamila - cumprimentou-a saboreando cada letra de seu nome, como se proferisse uma oração.

— Como você está? Fiquei sabendo de seu irmão, eu sinto muito — disse. Os espiões de Yusuf informaram-na de que Manoel morrera enfrentando Jamal.

— Ainda terei minha vingança contra Jamal, por meu irmão e por seu pai - respondeu olhando para o horizonte, evitando a tentação de se perder em seus olhos verdes.

— Porque não me encaras? – perguntou com voz suave.

Ele voltou seu olhar para ela, tão próxima que bastava esticar o braço para tocar sua face e por um momento quase o fez, mas segurou com força as rédeas de sua montaria.

— Seus filhos nasceram? Espero que estejam bem – disse para quebrar o silêncio que caíra sobre eles e evitar a pergunta, como poderia confessar que vê-la tão perto fazia seu sangue ferver?

— Sim, um menino e uma menina, nasceram na noite em que você esteve no palácio de meu esposo - respondeu sustentando seu olhar.

Uma esperança cruzou sua mente, os gêmeos seriam dele, pensou alegremente, mas Jamila interpretou sua expressão e o atingiu de forma mais violenta do que o golpe de uma cimitarra árabe.

— Nasceram prematuros... – ela completou com os olhos marejados de lágrimas.

Juan voltou a olhar para frente para disfarçar a dor que sentia e controlar as lágrimas que ameaçavam inundar seus olhos.

— Fico feliz por vocês, minha senhora — respondeu endurecendo a voz.

***

Jamila observou a expressão de dor em seu semblante, o conhecia bem demais para se deixar enganar por sua pretensa expressão impassível. Ouvi-lo chama-la de "minha senhora", a magoava mais do que queria admitir.

— Não sou mais sua "Dama"? – perguntou em voz baixa e se arrependeu no mesmo instante. Por que não conseguia se controlar ao lado dele?

— Em meu coração e alma você sempre será "minha Dama", mas para o mundo exterior somente "minha Senhora", você é uma mulher casada e eu um cavaleiro que fez voto de castidade — respondeu com uma expressão tão sofrida que ela não conseguiu impedir que lágrimas escorressem de seus olhos.

Não entendia o porquê viera ter com ele, o amava desesperadamente, mas jamais quebraria seu voto de fidelidade, ao se casar perdera Juan para sempre.

— Me desculpe, eu não deveria ter desenterrado velhos sentimentos e lembranças — respondeu e deteve sua montaria.

Juan a encarou por cima dos ombros sem se deter e então golpeou com violência seu cavalo e disparou galopando em direção norte.

Ela juntou-se novamente a comitiva e seu irmão a encarou de fisionomia carregada.

— Não tens vergonha irmã? – sussurrou asperamente — És uma mulher casada, deves ficar ao meu lado e não se adiantar para conversar com esse homem que a desonrou. Se não fosse pelo juramento que Suleymán me obrigou a fazer de que não lhe faria mal, já o teria passado pelo fio de minha cimitarra.

— Falaste bem, meu irmão, sou uma mulher casada, somente devo satisfação ao meu marido, estou aqui como uma igual, representando Suleymán, sei de minhas obrigações e conheço meus votos, votos estes que você me obrigou a aceitar! - respondeu com amargura e se dirigiu até Yusuf e padre Paulus que conversavam enquanto trotavam lado a lado.

O restante da viagem Juan manteve-se o mais afastado possível dela, com exceção da última noite antes de chegarem a Oviedo, quando se reuniram em volta de uma fogueira no acampamento noturno.

Os cavaleiros estavam felizes, afinal estavam no Reino das Astúrias e a viagem não enfrentara contratempos, as tropas de Jamal estavam inativas há varias semanas, segundo os espiões de Yusuf tinham voltado para Córdova.

A noite estava gelada, apesar de ser quase verão, e todos se aqueciam em volta da fogueira. Juan não era exceção, embora se mantivesse o mais afastado possível. Alguns cavaleiros começaram a pedir para que ele cantasse, mas o jovem apenas observava as próprias mãos de cabeça baixa.

— Cante Juan, lembro como você cantava às vezes no palácio de meu pai, antes de trair nossa hospitalidade - disse rindo de forma áspera Mahmud.

Jamila o fuzilou com o olhar, mas seu irmão apenas deu de ombros. Um silêncio pesado caiu em razão da acusação.

Juan se levantou novamente e se aproximou da fogueira, encarando– a fixamente começou a cantar com uma bela e potente voz e ela sentiu que um fogo líquido parecia percorrer seu corpo por baixo da pele, tendo como origem sua intimidade, que parecia arder como mil fornalhas.

— Quando vejo a cotovia bater suas asas

de alegria contra o raio de sol,

até que se deixa cair, esquecida de voar,

devido à doçura que lhe vai ao coração

ai, tão grande inveja me vem

daqueles que vejo cheios de alegria

que me assombro que meu coração

não derreta imediatamente de desejo

Ai, tanto cuidava eu saber do amor

e tão pouco sei

pois não posso me conter de amar

aquela de quem não terei favor.

Ela roubou de mim meu coração,

todo o meu ser, e todo o meu mundo.

e quando se retirou de mim,

não me deixou nada

além de desejo e um coração ansioso

O tempo vai e vem e vira

Por dias, por meses, por anos,

Mas o desejo que me tira

a vida e dá só desenganos

É sempre o mesmo, eu nunca mudo;

Só quero a ela, mais que tudo,

A ela que só me dá tormento13.

Ele cantou com tanta emoção e sentimento que todos ficaram calados, em seguida fazendo uma mesura para ela, virou as costas e caminhou em direção à escuridão da noite. 

A GUERREIRA INDOMÁVELOnde as histórias ganham vida. Descobre agora