Capítulo 19

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Dia 22.05.. Lançamento do  Volume 2. O CAVALEIRO DA SOLIDÃO.

Mérida- Primavera, Junho de 833 d.C.

Padre Paulus observava o Sheik, seu general Jamal, e o bispo Ariulfo, todos em volta da mesa discutindo abertamente os planos da rebelião. Sem a presença de Yusuf, fora fácil para o comandante de confiança de Abd al-Ŷabbãr ben Zãqila, convencê-lo a se rebelar.

Recordou-se de quando, dias antes, Juan o avisara que partiria com a tropa do Sheik para enfrentar o ataque de bárbaros que subiram o rio, ele fora terminantemente contra essa aventura.

— Não estamos aqui para nos envolvermos nos problemas dos árabes – dissera irritado.

— Não? – retorquira Juan erguendo uma sobrancelha — Pensei que estivéssemos aqui em uma missão para convencer um líder berbere a se revoltar contra o Emir, seu legítimo governante.

— Não é a mesma coisa – dissera constrangido, mesmo sabendo que era — e além do mais, você está indo somente para ficar ao lado da filha dele!

— E se estiver? – rosnara de volta visivelmente irritado.

— Meu filho, tire essas ideias da cabeça – temporalizara mais calmo — esse relacionamento é impossível!

— Por quê? Padre, me diga, por quê! – teimara o jovem.

— Você é um fidalgo, segundo na linha de sucessão do Duque de Luco de Ástures, seu pai tem planos para casá-lo com a filha de um nobre da corte!

— Meu pai nunca se importou comigo, se eu não retornar, ele ficará agradecido! Penso seriamente em me converter ao islamismo, se isso me permitir ficar ao lado de Jamila.

Paulus ficou chocado, nunca pensara que o jovem que educara chegaria ao ponto de trair a fé cristã.

— O que dizes? Tire essa ideia da cabeça, onde já se viu! Se tornar muçulmano! E ainda que seu pai não se importasse com sua ausência, o pai de Jamila e seu irmão Mahmud nunca permitirão que vocês fiquem juntos! Eles têm planos para ela! Acreditas que eles não a obrigariam a se casar quando chegar o momento e encontrarem um pretendente satisfatório? Não mantenha ilusões com a aparente liberdade dela, Jamila ainda é uma mulher do clã, assim como as mulheres cristãs, ela deve obediência ao pai! – exclamara tentando colocar juízo na mente de seu pupilo.

— Jamila somente se entregará ao homem que a vencer em combate – resmungara mal humorado.

— E esse homem seria você?

— Estou treinando para isso.

— Meu senhor Jesus Cristo! Que Ele ponha juízo em sua cabeça! – exclamara irritado e surpreso, mas o jovem fora irredutível.

Durante o desjejum, antes da partida do jovem, ele tentara novamente.

— Isso é loucura Juan! – exasperara-se o padre ao ver a teimosia do rapaz — Você pode ser morto!

— O que é a vida sem nos arriscarmos? – perguntara se preparando para partir — Eu já pensava em ganhar o mundo antes de virmos para cá, meu plano era me tornar um mercenário, ao menos aqui há uma causa justa pela qual lutar, vamos proteger os aldeões dos bárbaros que os atacaram.

— Você está indo para uma batalha, já pensou no que pode acontecer? Você está preparado para matar alguém? Ou para ser morto? – perguntara tentando convencê-lo.

— É minha oportunidade de provar minha coragem e habilidade, se eu morrer, pelo menos morrerei tentando fazer algo útil – resmungara contrariado com a insistência do padre por quem tinha um enorme carinho.

— Juan, meu filho, por que és tão sonhador? – suspirara resignado — Espero que isso não lhe traga dor e desilusão.

— Sua benção, padre – o jovem cortara a discussão.

— Deus o abençoe, meu filho – respondera vendo-o pegar seus poucos pertences e partir em sua montaria.

Com um suspiro, voltou sua atenção novamente para a discussão que ocorria, pedindo para que Deus protegesse Juan e colocasse juízo em sua cabeça.

Ariulfo sugeriu que enviassem um convite para um importante muladi chamado Suleymán Ibn Martín, para que este unisse suas forças com a do Sheik.

— E o que eu ofereceria a ele? – perguntou Abd al-Ŷabbãr.

— Meu senhor, ele é um homem vigoroso, sua esposa faleceu ao dar à luz, sei que ele procura uma jovem de nobre estirpe, quem melhor do que sua filha Jamila? Afinal ela está na idade de casar – sugeriu o bispo.

— Ela jurou, em nome de Alá, que somente se entregaria ao homem que a derrotasse em combate – respondeu o Sheik.

— Meu senhor, Suleymán Ibn Martín é um guerreiro de renome, e ainda que ele não vença ou não queira duelar, o juramento feito por vossa filha não tem validade, pois cabe ao bom pastor guiar sua ovelha, ou seja, ao pai guiar sua filha – tornou a insistir Ariulfo com um sorriso.

Paulus ficou temeroso, não contara ao bispo o interesse do jovem fidalgo na guerreira berbere e, ainda que tivesse contado, Ariulfo com certeza diria que sentimentos pessoais não podiam se sobrepor aos interesses da Igreja. Agora temia a reação intempestiva de seu pupilo caso ele soubesse da proposta apresentada. Nunca vira o rapaz apaixonado antes, mas receava que ele se lançasse em um caminho que somente o levaria ao sofrimento ou a morte.

— Envie um convite para ele, vejamos se minha filha o agrada, então decidirei – ordenou o pai de Jamila.

Estranhamento Paulus percebeu que o general Jamal ficou em silêncio com uma expressão taciturna, estaria ele interessado na jovem? Mais um motivo para convencer Juan a sair de Mérida o quanto antes e voltar para casa.

Sua missão estava cumprida, o rei Afonso, aconselhado pelo Duque Iglesias, não se comprometera a um ataque direto, mas tão somente na ocupação de territórios adjacentes ao reino das Astúrias, uma terra de ninguém, abandonada durante as guerras de conquista muçulmanas, a qual o monarca pretendia repovoar com cristãos.

Mesmo sem a resposta do mensageiro enviado ao Rei Luís, o bispo garantira que aquilo era apenas formalidade e que os francos invadiriam o Emirado para apoiar a rebelião berbere em troca de concessões de terra na fronteira entre os dois reinos.

E se Suleymán Ibn Martín juntasse suas tropas à de Abd al-Ŷabbãr eles poderiam até mesmo derrubar o Emir em Córdova.

Agora que nada mais o detinha em Mérida o que ele mais queria era ir para casa, mas não podia abandonar Juan, a quem amava como um filho.

Por isso fechou osolhos e fez uma prece silenciosa.



notas

O termo muladi (do árabe مولدونor, translit. muwallad, pl. muwalladun ou muwalladeen: "concebido por mãe não árabe"), pode designar três grupos sociais presentes na Península Ibérica, na Idade Média:

1 —Cristão que abandonava o cristianismo, convertia-se ao Islã e vivia entre muçulmanos. Diferenciava-se do moçárabe, que se mantinha cristão em áreas de domínio muçulmano.

2 — Filho de um casamento misto cristão-muçulmano e de religião muçulmana.

3 — População de origem hispano-romana e visigótica que adotou a religião, a língua e os costumes do Islão para desfrutar dos mesmos direitos que os muçulmanos no Al-Andalus.

Dentro do terceiro grupo distingue-se a nobreza visigoda, que acabou fundindo-se com a árabe, embora em zonas distantes tenha protagonizado movimentos secessionistas, como o dos Banu Cassi. Já nas camadas mais humildes da população, a maioria optou pela conversão, independentemente de considerações religiosas, apenas para livrar-se do imposto territorial e pessoal. Não obstante, no século IX, as diferenças socioeconômicas do Al-Andalus geraram frequentes tensões, manifestas na sublevação do Arrabal ou na rebelião de Omar ibne Hafeçune. Este último, que se tornou célebre, nasceu em Ronda, de família goda, e seu avô se havia convertido ao Islã. Chegou a controlar politicamente uma área importante do Al-Andalus, tendo-se convertido ao cristianismo em 899 e instalado um bispo cristão em Bobastro.

A GUERREIRA INDOMÁVELOnde as histórias ganham vida. Descobre agora