Aparentes fracassos - IV

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Lleca havia desistindo de continuar falando sobre a voz dessa menina que ouvia junto a grade, visto que ninguem o levava a sério. Caçoavam dele, ou em todo caso se preocupavam ao pensar que estava delirando.

No entanto, as vozes estavam ali. No dia seguinte da primeira comunicação, voltou a grade e a chamou. Depois de alguns minutos a mesma voz de menina lhe respondeu. Insistia que ela estava escondida por causa da guerra. Lleca se perguntou se não se trataria de algum fantasma, atrapado entre a vida e a morte. Não seria estranho, visto que no jardim havia um cemitério e aquelas lápides lhe davam calafrios, e muitas vezes, quando jogavam futebol e a bola ia parar perto delas, lhe dava pavor se aproximar.

Mas a voz afirmava que não era nenhum fantasma, que era uma menina de dez anos, e que sobrevivia ali, escondida. Não houve maneira de convence-la de que não existia tal guerra.- Quero te conhecer, chapita. - lhe disse Lleca um dia. Houve um longo silencio.- Você é bom?- Sou melhor que o pão, Chapi. - respondeu Lleca.

Ela não se animava a concretar um encontro, no entanto não pôde mentir-lhe quando ele deduziu que, pelo o que ela dizia, devia estar no porão. Lleca se lembrava bem daquele dia em que haviam entrado por esses corredores escuros e haviam terminado nessa estranha habitação secreta. Ao dia seguinte daquele episódio, a porta pela qual havia entrado na lareira, havia sido interditada. Mas Lleca sabia por Cristobal que se podia ter acesso ao porão através de uma porta falsa entre as lápides do cemitério.

Saiu para o jardim, se aproximou das lápides, viu a porta oculta no chão, e com muita apreensão a abriu e desceu por uma estreita escada. Ao faze-lo viu que a sua direita se abria um corredor estreito. Avançou por esse corredor, que logo se bifurcou, e finalmente chegou até outro corredor com paredes de pedra que lhe resultou familiar: era aquele em que haviam estado, ou um muito parecido.Sem saber o que fazer, começou a chamar.- Chapita... chapi... está por aqui?

Não obteve resposta. Seguiu avançando pelo intricado labirinto, chamando de vez em quando. Quando já havia desistido de encontrá-la e temendo não saber como voltar, deu meia volta, e nesse momento ouviu o som de uma porta que se abria. Girou, e ficou boquiaberto com o que via: no final do corredor, junto ao que pensava que era uma parede e resultou ser uma porta, havia uma menina de dez anos, de cabelo muito longo e liso, um par de lindos e tristes olhos celestes, e vestida com um vestido de primeira comunhão.

- Lleca? - perguntou ela com temor.- Chapi? - disse ele, assombrado de que ela de verdade existia e, ao mesmo tempo, aliviado de saber que não havia estado ouvindo vozes de amigos imaginários.

Naquele primeiro encontro falaram pouco, ambos estavam assustados e não confiavam muito um no outro. Ela sempre pensava que ele podia ser um inimigo que lhe estivesse estendendo uma armadilha. E ele não descartava que ela fosse um fantasma.

Lleca insistiu com a ideia de que lá em cima não havia nenhuma guerra, e Luz se negou a lhe contar com quem vivia. Lhe rogou que não dissesse nada sobre ela e voltou a se trancar atrás da porta que parecia uma parede. Lleca regressou correndo até a superficie, e se deitou cedo, impressionado e sem comentar com ninguem sua descoberta.

Durante alguns dias não voltou a descer, e nem sequer se aproximou da grade. Mas no fim a curiosidade foi mais forte, voltou a falar com ela através da grade e lhe perguntou se ela queria ve-lo. Ela respondeu que sim, mas devia ser imediatamente.

O segundo encontro foi um pouco mais longo, ainda que não mais relaxado. Seguiam tendo medo um do outro, mas dessa vez ela lhe disse seu nome.- Luz... - repetiu ele, fascinado com sua delicada beleza e suas formas refinadas de falar e se mover.

No quinto encontro, ela finalmente lhe contou que vivia com sua mãe, que era uma enfermeira que ajudava os feridos da guerra; ele já nem se incomodou em esclarecer que a tal guerra não existia. Mas nessa tarde, ao se despedir, Lleca decidiu permanecer ali e comprovar se Chapi estava definitivamente louca ou havia algo de verdade em sua história. Ficou oculto na escuridão do corredor durante vários minutos.

Jamais teria imaginado o que viu. Desde o outro extremo do corredor havia aparecido uma sombra escura. Quando se aproximou, pôde reconhecer que se tratava de Justina, que trazia uma bandeja com comida. Viu como abriu a porta parede e ingressou no lugar onde várias vezes havia visto Luz entrar. Enquanto fechava a porta, Lleca ouviu que Tina, com uma doçura que jamais havia conhecido, dizia:- Olá, pequenina!- Mami! - ouviu exclamar a Luz antes que a porta voltasse a ser parede.

No dia seguinte Lleca não podia deixar de olhar para Justina enquanto esta servia o café da manhã. Ela lhe cravou seus olhos de coruja:

- O que está olhando?- Nada, nada... - respondeu ele, sem poder unir em sua cabeça esta Justina com a que havia visto no porão.

Se dedicou a vigiá-la, e observou como em vários momentos do dia entrava em seu quarto e não voltava a sair por vários minutos. Na hora do almoço viu que se dirigia ao seu quarto com uma bandeja com comida; e deduziu que estaria descendo ao porão desde ali onde, sem duvidas, haveria outra porta secreta. Correu até o cemitério, desceu pela escadinha, e recorreu de memória os corredores, correndo. Esperou escondido até ve-la sair do lugar onde vivia Luz. Esperou que ela se afastasse e logo chamou a menina. Ela apareceu, surpreendida.

- Não te esperava hoje, Lleca. - disse ela, feliz de ver a seu amigo secreto.- Você é filha de Justina? - disparou Lleca.- Conhece a minha mamãe? - se estremeceu ela.- Claro que a conheço...- De onde?- Vivo lá em cima, com ela.- Como lá em cima? Se a guerra...- Não existe nenhuma guerra, chabona! - se impacientou ele. - Eu vivo lá em cima, sua velha vive lá em cima... com um montão de crianças. Existe bagunças, brigas, mas guerra não há! - Mentira!- Uh, voce está muito louca, louca!- Você é um mentiroso, quer me enganar! - disse ela e correu para se trancar em seu porão.

Pela noite, quando Justina desceu para lhe dar a janta e lhe contou como haviam ocorrido os combates nesse dia, Luz se perguntou pela primeira vez em sua vida se sua mãe lhe dizia toda a verdade.

Quase Anjos - A Ilha de Eudamón (Português)Where stories live. Discover now