Caindo do alto de uma ilusão - X

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Depois de um breve e fugaz momento de felicidade, as coisas haviam voltado a ser mais lúgubres que antes para os órfãos da fundação. Cielo continuava se ocupando de cozinhar para eles e lavar suas roupas, mas não lhes sorria como antes, e toda sua alegria e entusiasmo haviam se apagado, sobretudo com Rama.

Thiago havia se distanciado deles porque haviam defendido Rama. Havia brigado principalmente com Mar, no dia em que ele lhe questionou como podia defender o imbecil que lhes havia arruinado a unica possibilidade de seguir adiante que haviam tido na vida. Mar se enfureceu com ele, e farta da impotencia de não poder lhe dizer o que havia ocorrido de verdade, explodiu.

- Rama não teve nada a ver, aqui o culpado de tudo é o lixo do seu pai!

Óbviamente Thiago pediu explicações, e foram Tacho e Jazmin que evitaram que Mar se excedesse; dar esse passo seria letal para todos eles. Essa discussão afastou ainda mais a Thiago dos jovens. Para Mar, Thiago foi um assunto encerrado quando o viu aparecer de mãos dadas com Tefi. Finalmente a magrela e chiliquenta havia conquistado seu objetivo, e estavam namorando.

Já sem as aulas de Nico, nem as de dança de Cielo, a vida dos órfãos havia ficado mais sombria que antes, e agora eram obrigados a trabalhar e roubar dia e noite, sem nenhum tipo de escrúpulos.

Os unicos que luziam radiantes e destampando champagne eram Justina e Bartolomeu. As coisas haviam voltado aos trilhos. Só um detalhe deixava um pouco mal a Bartolomeu: a saúde de sua irmã. No princípio acreditou que o acidente de Malvina era parte do acting, mas quando comprovou que estava a beira da morte, se angustiou de verdade. Quando já esteve fora de perigo, se animou pensando que em algum tempo seus ossinhos se uniriam e Bauer, que lhe devia a vida de seu filho, se casaria imediatamente com ela. Seus planos haviam tido um resultado imelhorável.

Rama estava desiludido. Dessa vez sabia que nem ele e nem sua irmã teriam a possibilidade de seguir adiante. Então falou com Tacho, Jazmin e Marianella para lhes propor uma solução desesperada. Desde que haviam começado a trabalhar para Bartolomeu, este lhes assegurava que uma pequena porcentagem do arrecadado era depositado em uma conta poupança que cada tutelado tinha em seu nome. Era uma pequena poupança que tinham para seu futuro. Rama pensava que, se tinham uma chance de melhorar suas vidas, era longe da fundação; então lhes propôs tomar controle de suas partes para poder fugir. Para Tacho não lhe faltava vontade, mas entendia que seria dificil obrigar Bartolomeu a entregar a eles. Rama sabia que isso seria impossível, mas estava disposto a arriscar o tudo pelo tudo: já que estavam obrigados a roubar, roubariam seu próprio explorador. Mas por sua curiosa natureza justa, Rama não queria roubar um centavo a mais do que lhes correspondia, por isso queria saber exatamente quanto de dinheiro cada um tinha em sua conta poupança. Ao contrário, Jazmin opinava que deviam roubar tudo o que pudessem e fugir. Marianella sabia por experiencia propria que fugir só os levaria a um novo lugar do qual, cedo ou tarde, tambem teriam que escapar. No entanto, todos estiveram de acordo com a ideia de acabar com aquela opressão.

Numa noite, enquanto Barto se ocupava de dar papinha para Malvina, Rama e Tacho se enfiaram no escritório para revisar os cadernos contábeis de Bartolomeu. Sabiam que ele tinha um grande caderno no qual cada dia anotava a porcentagem que correspondia a cada tutelado. Tambem havia lhes mostrado o caderno onde registrava cada movimento bancário, com seu interesse correspondente.

Sentiram que se tratava de uma estranha pegadinha quando encontraram o enorme caderno no qual o haviam visto registrar as quantidades cada dia. Não tinha nada mais que rabiscos. Cada vez que, diante de seus próprios narizes havia fingido anotar com suas vírgulas e decimais as quantias, o que fazia na realidade era zombar deles. No principio resistiram a acreditar no que estavam vendo, mas foi o próprio Bartolomeu quem os confirmou, quando entrou e os surpreendeu revisando seus papéis.

- Sério que acreditaram que eu estava investindo em seu futuro? Voces não tem futuro, ranhentos. Nem futuro, nem passado, nem presente. São miseráveis, desgraçados, que continuam vivos porque sou generoso. Agradeçam que comem milanesas de berinjelas queimadas, agradeçam o colchãozinho sujo em que dormem, agradeçam que podem ver a luz do sol, pivetes.
- Onde escondeu nosso dinheiro? - disse Tacho, apertando os punhos.
- "Nosso dinheiro?" - repetiu Bartolomeu com um gesto zombeteiro. - Não existe "nosso dinheiro", Tachinho. Entende o portugues? Não há dinheiro, nunca vão ter dinheiro.

E então Tacho fez o que muitas vezes havia desejado fazer mas jamais havia se atrevido. Cruzou o limite, e se jogou com todo o peso de seu corpo contra Bartolomeu. Atravessaram a porta do escritório e cairam, rodando, na sala. Rama estava aturdido, não sabia o que devia fazer, e assim os encontrou Thiago. Assim que os viu, saltou para defender seu pai. Os gritos alarmaram Cielo, que estava na cozinha, e tambem a Nico, que havia ido visitar Malvina.

De repente, a sala se encheu de gente, Tacho estava furioso, enceguecido, e Rama apenas tentava contê-lo. Thiago estava cada vez mais indignado com eles; agora, além de tudo, agrediam seu pai. Mar e Jazmin tambem acudiram quando ouviram os gritos de Tacho e Thiago. Nico interviu quando viu que Bartolomeu, totalmente desamparado, não conseguia nem reagir.
- Tacho, se acalme por favor! - gritou Nico com voz firme.
- O que voce tem, cara, está louco?! - explodiu Thiago.
- Não, Thiaguinho, entenda-os, são adolescentes com um passado terrível, são como animaizinhos, pobrezinhos. - disse, misericordioso, Bartolomeu.
- Não merecem tudo o que voce faz por eles. São uns mal-agradecidos! - insistiu Thiago, indignado.

Cielo observava como Tacho, assim como Rama, Mar e Jazmin faziam um grande esforço para conter sua raiva. Havia algo que estava sempre latente, Cielo podia pressentir. Como Thiago continuava agredindo Tacho, finalmente Mar estalou.

- Quer saber quem é seu pai? Voce, que o defende tanto, quer saber?!
- O que? O que vai dizer dele?! - a apressou Thiago.
- Quer saber?!
- Crianças, crianças... - tentou mediar Nicolas.
- Quer saber?!
- Se tiver algo para falar, fale logo! - gritou Thiago.
- Deixe-a, Thiaguinho... - disse Barto, vendo que a situação saia do controle. - Vamos ver, o que tem para dizer de mim, Marita? - disse Barto olhando-a fixamente nos olhos.

Mar olhou para Thiago, que a contemplava com ódio; compreendeu que ele jamais poderia acreditar na verdade sobre seu pai. Olhou para Cielo e para Nico, eles os amavam, sem duvidas, mas estavam convencidos de que eram jovens problemáticos. Olhou para seus amigos, e todos lhe fizeram um imperceptível gesto para que se calasse, ainda tinham muito a perder. Finalmente Mar se conteve, e se retirou, sem dizer nada.


Ante a tentativa de rebelião, Bartolomeu considerou que tinha que dar uma clara amostra de poder. Ou os domava imediatamente ou em breve teria uma rebelião batendo na porta; então, nessa mesma noite, alguns minutos depois das luzes terem se apagado, as mesmas voltaram a se acender e Bartolomeu entrou no quarto das garotas, feito uma fúria. Sem dar-lhe tempo de reagir, agarrou Marianella pelos cabelos e a arrancou da cama. Instintiva, Jazmin saltou para defender sua amiga, e quando quis empurrá-lo para que a soltasse, Bartolomeu lhe deu uma bofetada com a mão livre. Jazmin era uma adolescente submetida na fundação, mas o sangue cigano corria por suas veias, e enfurecida, se jogou em cima dele e cravou suas unhas na cara de Bartolomeu. Ele, absorto, soltou Marianella e agarrou Jazmin pelo pescoço, e a chocou contra o guarda-roupas. Os barulhos e os gritos alarmaram os rapazes, que entraram imediatamente no quarto. Viram a furia e a crueldade nos olhos de Bartolomeu, que disparou suas advertencias como balas.

- Alguem mais que se rebele, e vão saber o que é sofrer de verdade!

Tacho suplicou a Bartolomeu que a soltasse, e a Jazmin, que se tranquilizasse. Ela não disse nada, mas em silencio o amaldiçoou olhando fixamente em seus olhos. Bartolomeu a soltou, empurrando-a para Marianella, que a segurou em seus braços.

- A partir de hoje e por tempo indeterminado, vão trabalhar a noite toda na oficina de brinquedos, até que lhes passem essas infulas rebeldes. - concluiu.

E imediatamente entrou Justina, quem, com sua mão estendida, lhes indicou o caminho até a porta enganosa do pátio.


Quase Anjos - A Ilha de Eudamón (Português)Where stories live. Discover now