Essa espécie de terremoto despertou finalmente a Thiago, quem, estranhado, desceu para ver se havia acontecido algo. Ao chegar no topo da escada, viu como Cielo, seu pai, e todos os órfãos iam para seus respectivos quartos. Os seguiu. Mas ao chegar no pátio coberto ficou pasmo diante do que aparecia: uma das paredes do pátio estava corrida, deixando visível a oficina oculta. Ali estava Cielo, que ia apontando a cada coisa que nomeava. Seu pai, que perambulava pelo lugar, e todos os órfãos permaneciam imóveis, com suas cabeças baixas.
- O senhor realmente acha que este é um lugar para crianças? - exclamou Cielo com indignação. - Diga algo, vamos. - continuou sem lhe dar tempo de responder enquanto se aproximava do forno de cerâmica e o abria. - Um forno! Trancados em um lugar com fogo! - exclamou, e depois foi até a mesa e corte e pegou uma grande tesoura. - Olhe! Para que se arranquem um olho? Acha mesmo que essa é a forma de aprender um ofício? Não me diga que não foi uma inconsciencia de sua parte, don Barto!
- É dificil ter tantas crianças a cargo, Cielo... - tentou uma defesa Bartolomeu - e além disso... o que é melhor? Deixá-los em suas brincadeiras ou dar-lhes uma ferramenta para a vida? O trabalho nos faz livres, Sky!
- Ferramentas para a vida eram as aulas de don Indi, ou minhas aulas de dança, ou as de corte e confecção e de carpintaria que Justina ia lhes dar e nunca deu...
- Justamente, decidiu trocá-las por isso, Cielitis...
- Não posso entender como o senhor esteve de acordo! - bramou Cielo.
- Não foi uma decisão arbitrária... falamos muito com as próprias crianças sobre isso. - disse, com cinismo, e os congelou com o olhar, convocando-os a ser, ao mesmo tempo, vítimas e cúmplices de sua mentira. - Ou minto, infantos?Mar se olhou com Rama, e ambos com Tacho, sabiam que Bartolomeu só estava dissimulando ante Cielo; quando ela saísse, as represálias seriam severíssimas. Então decidiram seguir a corrente, e assentiram concordando com ele.
- E o que me importa se falou ou não com eles? Isso é coisa de adultos, don!A ponto de perder a paciencia com os protestos de Cielo, Barto ia replicar, mas nesse momento viu Thiago, que observava tudo desde o pátio.
- Thiaguinho! - exclamou, e o coração começou a bater cada vez mais forte.
- O que é isso, pai? - perguntou seu filho, confuso ante a oficina.
- Idéias de Tina! Ela propôs e eu pensei que serviria para conduzir minhas crianças. Ok, acabaram ficando sem a bolsa pelo vacilo de Ramita, mas eu não podia deixá-los na mão, che... algo tinha que ensinar a eles, um ofício, algo para que quando já não tenham mais a mim, para poder ganharem a vida...
- E bom... a intenção foi boa - disse Cielo a Thiago, vendo que este ponto poderia enfrentar ainda mais a pai e filho.
- Sim, suficiente por hoje, já é tarde. - se apressou Barto, pensando que assim Cielo ia dar o assunto por encerrado.
- Não, suficiente nada, já estamos todos com os olhos como duas bolas, terminemos isso agora mesmo. Aqui o importante é ver se as crianças querem aprender este ofício. - disse e olhou para eles. - Falem, querem ou não querem?Os jovens se olharam entre sí, possivelmente calculando que Bartolomeu estava em uma situação de debilidade ante Cielo, e ainda mais ante Thiago. Tacho pensou que não podiam desmascará-lo nessa oportunidade, já chegaria o momento: então disse, complacente:
- É bom aprender um ofício.
- Mas quando a pessoa tem vontade... - acrescentou Marianella, multiplicando exponencialmente o ódio que Bartolomeu já tinha dela.
- Isso! - exclamou Cielo. - Don Barto, de agora em diante, aprende aquele que tiver vontade, o que acha?Bartolomeu não teve outra opção que assentir. Houvera querido assassinar a ela e a Marianella com suas próprias mãos. E depois a Justina, por idiota.
- Bom, vamos ver, quem tem vontade de fazer isso? - e olhou para eles buscando uma resposta.A primeira que se animou a responder foi Mar.
- A verdade... é que não, eu não quero fazer isso.
- Sim, não gosto dessa coisa de fazer brinquedos. - se somou Jazmin.
- E eu menos, ainda mais bonecas. É um porre. - colaborou Lleca.
- Eu nem louco, panchos! - disse despreocupado Monito, quem ainda não havia conhecido a cara bestial de seu tutor.
- Pensei que eu os estava ajudando, pequeninos... - disse Bartolomeu com um triste sorriso e uns olhos que prometiam um severíssimo castigo por essa insubordinação.
- Sim, claro que sabemos que pensava isso, don Barto. - disse Tacho, já envalentado pela revolta. - Mas a verdade é que não, nós não nos encaixamos alí... e menos ainda quando temos que fazer as cinco da manhã.
- Isso! - exclamou Cielo. - Nem falemos dos horários. Quem é que pensa que é uma boa ideia faze-los aprender um ofício a essa hora?
- Coisas de Justin... - acusou covardemente Bartolomeu. - Por essa coisa de... Deus ajuda quem cedo madruga...
- Muito obrigado, don Barto, mas não queremos mais fazer brinquedos. - disse Rama sorridente, mas todos ficaram mudos e sérios na hora com a participação de Thiago.- Voces são uns mal-agradecidos! Não valorizam nada; meu velho lhes da tudo, se mata por voces e voces lhe pagam assim? Voce, Rama, não só arruinou a possibilidade de todos estudarem, senão que ainda por cima... não quer aprender um ofício? O que quer, então? Que te sustentem a vida toda?
- Ah, fundiu a manivela, moleque! - saltou Marianella, já indignada com Thiago. - Para de se meter com Rama. - o ameaçou.
- Por que voce defende tanto o Rama? - disse Thiago sem pudor em mostrar seus ciumes. - Se incomodam tanto que lhes queiram ensinar um ofício?
- Por que não vem voce aprender esse ofício? - replicou Marianella com uma bronca com Thiago um tanto exagerada.
- Sim, é muito fácil para voce, Thiago. - continuou Rama. - Voce estuda em Londres, e teve dinheiro a vida toda.
- Sim, mas os ricos necessitam de gente que lhes faça os serviços. - acrescentou Jazmin.Barto notou como, pouco a pouco, todos iam perdendo o medo, e decidiu intervir.
- Chega, não vamos ter uma dissertação sobre a justiça social a essa hora da noite! Obrigado, Thiaguinho, por sua defesa, mas isso eu mesmo manejo. Então, crianças, eu proponho que sigamos com o oficio e vamos vendo...
- Com licença, don, mas eu proponho que só aprenda o ofício quem tiver vontade, e o que não tiver, que estude... ou que brinque muito, que é o mais lindo que lhes pode acontecer nessa idade. Que cada um escolha com liberdade, o que acha?
- Totally! - disse Bartolomeu, que desejava que essa noite terminasse imediatamente. - São livres para escolher!Todos foram dormir, menos Justina. Apesar do grande rebuliço dessa noite, mais além da preocupação pelo descobrimento da oficina clandestina, não havia deixado de se torturar com a imagem de Luz, trancada no porão, queimando de febre.
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Quase Anjos - A Ilha de Eudamón (Português)
Teen FictionNuma noite de fevereiro de 1854, três pontos luminosos desenham no céu um triangulo perfeito: três relógios idênticos começaram a funcionar ao mesmo tempo, e um deles está no sótão da mansão Inchausti. E ainda que pareça uma cena ocorrida por azar...