Várias descobertas - IV

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Essa espécie de terremoto despertou finalmente a Thiago, quem, estranhado, desceu para ver se havia acontecido algo. Ao chegar no topo da escada, viu como Cielo, seu pai, e todos os órfãos iam para seus respectivos quartos. Os seguiu. Mas ao chegar no pátio coberto ficou pasmo diante do que aparecia: uma das paredes do pátio estava corrida, deixando visível a oficina oculta. Ali estava Cielo, que ia apontando a cada coisa que nomeava. Seu pai, que perambulava pelo lugar, e todos os órfãos permaneciam imóveis, com suas cabeças baixas.


- O senhor realmente acha que este é um lugar para crianças? - exclamou Cielo com indignação. - Diga algo, vamos. - continuou sem lhe dar tempo de responder enquanto se aproximava do forno de cerâmica e o abria. - Um forno! Trancados em um lugar com fogo! - exclamou, e depois foi até a mesa e corte e pegou uma grande tesoura. - Olhe! Para que se arranquem um olho? Acha mesmo que essa é a forma de aprender um ofício? Não me diga que não foi uma inconsciencia de sua parte, don Barto!
- É dificil ter tantas crianças a cargo, Cielo... - tentou uma defesa Bartolomeu - e além disso... o que é melhor? Deixá-los em suas brincadeiras ou dar-lhes uma ferramenta para a vida? O trabalho nos faz livres, Sky!
- Ferramentas para a vida eram as aulas de don Indi, ou minhas aulas de dança, ou as de corte e confecção e de carpintaria que Justina ia lhes dar e nunca deu...
- Justamente, decidiu trocá-las por isso, Cielitis...
- Não posso entender como o senhor esteve de acordo! - bramou Cielo.
- Não foi uma decisão arbitrária... falamos muito com as próprias crianças sobre isso. - disse, com cinismo, e os congelou com o olhar, convocando-os a ser, ao mesmo tempo, vítimas e cúmplices de sua mentira. - Ou minto, infantos?

Mar se olhou com Rama, e ambos com Tacho, sabiam que Bartolomeu só estava dissimulando ante Cielo; quando ela saísse, as represálias seriam severíssimas. Então decidiram seguir a corrente, e assentiram concordando com ele.
- E o que me importa se falou ou não com eles? Isso é coisa de adultos, don!

A ponto de perder a paciencia com os protestos de Cielo, Barto ia replicar, mas nesse momento viu Thiago, que observava tudo desde o pátio.

- Thiaguinho! - exclamou, e o coração começou a bater cada vez mais forte.
- O que é isso, pai? - perguntou seu filho, confuso ante a oficina.
- Idéias de Tina! Ela propôs e eu pensei que serviria para conduzir minhas crianças. Ok, acabaram ficando sem a bolsa pelo vacilo de Ramita, mas eu não podia deixá-los na mão, che... algo tinha que ensinar a eles, um ofício, algo para que quando já não tenham mais a mim, para poder ganharem a vida...
- E bom... a intenção foi boa - disse Cielo a Thiago, vendo que este ponto poderia enfrentar ainda mais a pai e filho.
- Sim, suficiente por hoje, já é tarde. - se apressou Barto, pensando que assim Cielo ia dar o assunto por encerrado.
- Não, suficiente nada, já estamos todos com os olhos como duas bolas, terminemos isso agora mesmo. Aqui o importante é ver se as crianças querem aprender este ofício. - disse e olhou para eles. - Falem, querem ou não querem?

Os jovens se olharam entre sí, possivelmente calculando que Bartolomeu estava em uma situação de debilidade ante Cielo, e ainda mais ante Thiago. Tacho pensou que não podiam desmascará-lo nessa oportunidade, já chegaria o momento: então disse, complacente:
- É bom aprender um ofício.
- Mas quando a pessoa tem vontade... - acrescentou Marianella, multiplicando exponencialmente o ódio que Bartolomeu já tinha dela.
- Isso! - exclamou Cielo. - Don Barto, de agora em diante, aprende aquele que tiver vontade, o que acha?

Bartolomeu não teve outra opção que assentir. Houvera querido assassinar a ela e a Marianella com suas próprias mãos. E depois a Justina, por idiota.
- Bom, vamos ver, quem tem vontade de fazer isso? - e olhou para eles buscando uma resposta.

A primeira que se animou a responder foi Mar.
- A verdade... é que não, eu não quero fazer isso.
- Sim, não gosto dessa coisa de fazer brinquedos. - se somou Jazmin.
- E eu menos, ainda mais bonecas. É um porre. - colaborou Lleca.
- Eu nem louco, panchos! - disse despreocupado Monito, quem ainda não havia conhecido a cara bestial de seu tutor.
- Pensei que eu os estava ajudando, pequeninos... - disse Bartolomeu com um triste sorriso e uns olhos que prometiam um severíssimo castigo por essa insubordinação.
- Sim, claro que sabemos que pensava isso, don Barto. - disse Tacho, já envalentado pela revolta. - Mas a verdade é que não, nós não nos encaixamos alí... e menos ainda quando temos que fazer as cinco da manhã.
- Isso! - exclamou Cielo. - Nem falemos dos horários. Quem é que pensa que é uma boa ideia faze-los aprender um ofício a essa hora?
- Coisas de Justin... - acusou covardemente Bartolomeu. - Por essa coisa de... Deus ajuda quem cedo madruga...
- Muito obrigado, don Barto, mas não queremos mais fazer brinquedos. - disse Rama sorridente, mas todos ficaram mudos e sérios na hora com a participação de Thiago.

- Voces são uns mal-agradecidos! Não valorizam nada; meu velho lhes da tudo, se mata por voces e voces lhe pagam assim? Voce, Rama, não só arruinou a possibilidade de todos estudarem, senão que ainda por cima... não quer aprender um ofício? O que quer, então? Que te sustentem a vida toda?

- Ah, fundiu a manivela, moleque! - saltou Marianella, já indignada com Thiago. - Para de se meter com Rama. - o ameaçou.
- Por que voce defende tanto o Rama? - disse Thiago sem pudor em mostrar seus ciumes. - Se incomodam tanto que lhes queiram ensinar um ofício?
- Por que não vem voce aprender esse ofício? - replicou Marianella com uma bronca com Thiago um tanto exagerada.
- Sim, é muito fácil para voce, Thiago. - continuou Rama. - Voce estuda em Londres, e teve dinheiro a vida toda.
- Sim, mas os ricos necessitam de gente que lhes faça os serviços. - acrescentou Jazmin.

Barto notou como, pouco a pouco, todos iam perdendo o medo, e decidiu intervir.
- Chega, não vamos ter uma dissertação sobre a justiça social a essa hora da noite! Obrigado, Thiaguinho, por sua defesa, mas isso eu mesmo manejo. Então, crianças, eu proponho que sigamos com o oficio e vamos vendo...
- Com licença, don, mas eu proponho que só aprenda o ofício quem tiver vontade, e o que não tiver, que estude... ou que brinque muito, que é o mais lindo que lhes pode acontecer nessa idade. Que cada um escolha com liberdade, o que acha?
- Totally! - disse Bartolomeu, que desejava que essa noite terminasse imediatamente. - São livres para escolher!

Todos foram dormir, menos Justina. Apesar do grande rebuliço dessa noite, mais além da preocupação pelo descobrimento da oficina clandestina, não havia deixado de se torturar com a imagem de Luz, trancada no porão, queimando de febre.


Quase Anjos - A Ilha de Eudamón (Português)Where stories live. Discover now