Várias descobertas - V

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Depois de escolher entre vários antibióticos guardados em uma caixa, debaixo de sua cama, Justina havia começado a cantar-lhe uma canção no ouvido, enquanto colocava panos frios em sua testa para abaixar a febre. Mas no meio do refrão, a menina arregalou seus olhos febris e focou em um ponto na semi-penumbra...
- Mamãe... - exclamou débil e com um pouco de espanto.

Justina girou imediatamente em direção aonde a menina, quase alucinada, estava olhando. Alí estava Bartolomeu, que observava, perplexo, a outra descoberta dessa noite fatídica.

- Mamãe... quem é? É o general Bauer? - perguntou Luz aterrorizada.

Quando Justina lhe contava histórias da guerra, o fazia utilizando nomes reais para seus personagens fictícios. Em seus contos, o general Bauer era um cruel e impiedoso oficial das forças inimigas. Cielo, "a rameira", era a desumana amante do general Bauer.
- O general Bauer? - repetiu Bartolomeu com um sorriso sarcástico.
- Não, meu amor... - respondeu Justina, e a modo de explicação, disse a Barto: - Eu contei tudo a ela sobre as tropas inimigas.
- É Mogli, "o sanguinário"? - perguntou Luz aterrorizada, provocando outra gargalhada em Bartolomeu.
- Não, Luzinha, o senhor é um... juíz. - disse Justina, com dupla intenção, olhando para Barto. - Ele julga... julga o que está bom e o que está mau. Ele decide quem vive e quem não.
- É mau? - perguntou Luz, que tinha só duas categorias para enquadrar as pessoas: bons e maus, amigos e inimigos.
- Sou justo. - replicou Bartolomeu, mas era uma resposta mais dirigida a Tina. - E não suporto a mentira.
- A guerra vai terminar, senhor juíz? - perguntou Luz angustiada. Era a primeira vez que via um ser humano além de sua mãe e dos atores dos filmes que assistia com avidez.
- A guerra! - exclamou Bartolomeu, e olhou para Justina. - Estamos em guerra?
- Minha filha sabe perfeitamente que lá fora há uma guerra. - disse ela, e Bartolomeu percebeu que, ali embaixo, ela não pronunciava exageradamente os erres.
- Estou farta dessa guerra! - se queixou Luz. - Queria sair e ver o sol... nunca o vi.
- Tem dez anos e nunca viu o sol! Que loucura esta guerra, não?
- Por favor, senhor juiz, não nos delate.- suplicou Justina, e continuou com sua ameaça velada. - Se não vão ser vários os que não vão ver mais a luz do sol.
- Aproveitem o pouco que resta para dormir e descansem tranquilas, mais tarde conversamos... senhora. - lhes recomendou, fulminando Justina com o olhar, e se retirou.

Mas na verdade, por causa de tantas revelações e sobressaltos, ninguem voltou a dormir. Nem Nico e sua equipe pregaram o olho ante a descoberta da totecona, nem Bartolomeu pensando na traição de Tina, nem esta pensando nas represálias que seu amo lhe daria. Tampouco dormiu Luz, excitada pela febre, e por ter visto pela primeira vez um ser humano distinto de sua mãe. Tampouco dormiu Malvina, quem ainda não havia podido se levantar e nem pedir ajuda. Todos os órfãos estavam excitados pelo o que haviam se animado a fazer e, ao mesmo tempo, assustados, pensando com que novo plano Barto atacaria agora que um de seus segredos havia sido descoberto. Thiago tambem não dormia, pensando no que havia visto, enojado pela ingratidão que via nos garotos e, sobretudo, incomodado pela veemencia com a que Mar defendia Rama. Tampouco dormia Cielo, que não parou de dar voltas em sua cama: se encontrar de repente com a oficina havia sido impactante, mas já havia pensando em uma ideia para fazer algo a respeito. Na realidade o que não a deixava dormir era outra coisa. Sentia que algo mais se estava escapando e não chegava a compreender do que se tratava.


Na manhã seguinte, a primeira coisa que Bartolomeu viu ao descer as escadas foi Justina, quem, mais obscura que nunca, o olhava, cruzada de braços na sala. Com uma tensão crescente, se falaram sem deixar de se olharem nos olhos, enquanto ele descia as escadas.
- Bom dia, Justina. Tudo bem? Há sol? - perguntou com ironia Bartolomeu.
- Para os que não estão presos, sim. - replicou ela, renovando sua ameaça de denunciá-lo se ele se metesse com sua Luzinha.

Sem deixar de se ameaçarem com indiretas, avançaram até o pátio coberto. A seu passo, Bartolomeu pegou o jornal que estava sobre uma mesa.
- Alguma novidade sobre a descoberta que a empregada oporrrrtunista fez ontem a noite? - perguntou Justina com a esperança de que as coisas voltassem a normalidade, mas Bartolomeu não estava disposto a passar por alto seu próprio descobrimento.
- Que coisa, não? Tem gente que guarda segredos nos porões de sua memória... e não pode tirá-los a luz... é muito complexo, não, Medarda?
- Tão complexo como colocar os panos para secar no sol. - replicou Tina.
- Guerra na África, che! - exclamou sarcástico Bartolomeu, enquanto folheava um pouco o jornal, ao mesmo tempo que caminhavam. - Que coisa essa guerra, não? Há criancinhas que nunca chegam a ver a luz, um horror...
- Há pessoas que perdem a liberdade, outro horrrror. - disse Justina deixando as ironias de lado e ameaçando-o frontalmente.

A tensão, as indiretas e as advertencias se cortaram em seco quando começaram a ouvir barulhos e a voz de Cielo, que provinha da oficina de brinquedos. Ambos foram até lá e ficaram mudos diante do que viram: com a ajuda dos rapazes, entre todos estavam arrancando as tábuas de madeira que cobriam as janelas para que a oficina não fosse vista do lado de fora. Mar e Jazmin juntavam a sujeira acumulada, enquanto afastavam as máquinas, abrindo espaço. Barto semi-cerrou seus olhos para se defender da luz do sol. Pela primeira vez, em anos, o sol entrava na oficina de brinquedos.
- Sim, senhor! Luz para todo o mundo! - exclamou Cielo feliz, e os viu. - Don Barto, dona Urubu, olhem o que estamos fazendo...
- Vemos, vemos... - disse Barto demudado.

Cielo lhes contou que pensavam em converter esse lugar lúgubre em algo muito mais alegre. Haviam colocado o forno de cerâmica em um pequeno patio que havia no fundo da oficina, e haviam deixado as máquinas lá empilhadas; se alguém quisesse aprender o oficio, poderia faze-lo. Mas agora que ela havia descoberto esse lugar, tinham o espaço que necessitava, e não tinham antes, para suas aulas de dança, que retomaria nesse mesmo dia. Agora, ao abrir a porta enganosa, unindo a oficina com o pátio coberto, ficava um amplo espaço onde podiam fazer de tudo. Apontou para Lleca, Alelí e Monito, que começavam a pintar as paredes com cores. Usavam com energia suas mãos e tambem vários pincéis, se encharcavam, estavam todos felizes e entusiasmados.

Barto aplaudiu pequeno, fingindo alegria, e se afastou com Justina pisando os calcanhares.
- Enquanto o senhor e eu nos desgarrrramos em uma guerra interna, a empregadinha avança, senhorrr! Viu o que fez com nossa bem-amada oficina? Viu como os rrrrranhentos se insuborrrdinam? Senhor, lhe estão tremendo os pulsos... não acha que é hora de colocar essa intrometida em xeque?
- Nisso estamos de acordo, Justin. - disse Bartolomeu já com outro tom de voz. - Não só chegou a hora de colocá-la em xeque, senão que dar o mate de uma vez. É hora de que, enfim, não reste um só Inchausti vivo. Tem razão, estamos em guerra. - assegurou, e se foi sem acrescentar uma palavra mais.

Justina ficou sozinha, no meio do pátio. Um fio de gelo lhe recorreu a espinha.


Quase Anjos - A Ilha de Eudamón (Português)Where stories live. Discover now