Dois Compromissos - V

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Tal como Cielo suspeitava, a mansão era um labirinto, mas pôde contorná-lo, e conseguiu sair outra vez ao jardim de trás. Correu diretamente para a motorhome e se escondeu ali. Olhou para fora e viu que o loiro não a havia seguido. "O perdi", se disse com alívio, e ao mesmo tempo com certa tristeza. O relógio havia batido as doze para essa Cinderela, e devia se livrar do vestido e da carruagem. Essa noite havia um compromisso, mas não era o seu, ainda que, por alguns minutos, havia fingido que sim.

Se desvestiu e voltou a colocar sua roupa. Olhou para fora, não viu ninguem além de alguns garçons que saiam com garrafas cheias. Era uma noite fresca e havia uma grande lua que coroava a imensidade do jardim. Cielo desceu do veículo para ir embora, mas outra vez foi surpreendida por uma mão que segurou seu braço. Pensou que deveria aguçar sua visão quando se tratava de fugir. Dessa vez não era o homem de cachos quem a reteve, e sim o loiro, o pão, o galã que cheirava tão bem. Ela o olhou com medo e fascinação. Ele, só com enojo:
- Então está roubando outra vez, ladra!

Nicolas estava ofuscado, até demais, pensou ele mesmo, por um simples roubo. O que na verdade o enojava era o que essa mulher lhe produzia. Se sentia tão atraído como furioso. Ela ia começar a explicar, a se justificar, a esclarecer os fatos, mas como ele não parava de gritar e acusá-la de ladra, Cielo, que tinha um conceito muito firme de respeito e dignidade, replicou irada. E começaram a discutir aos gritos e, claro, sem se escutar.

Mas Nicolas tinha uma ideia precisa sobre a deliquencia: não via a um delinquente como tal, senão que mais como uma vítima. Não a todos os delinquentes, claro. Havia alguns que não tinham nada de vítimas, mas pensou que uma garota humilde e linda, que não deveria ter mais que vinte anos, certamente estava passando por uma grande necessidade para ter que roubar carteiras. Então depôs sua atitude e tentou dialogar.
- Por que rouba? - perguntou.

E Cielo reparou que essa mesma pergunta ela havia feito para a pequena Alelí algumas horas atrás. E assim como por trás dessa pergunta possivelmente haveria uma história longa e dificil de explicar, tampouco ela poderia sintetizar o ocorrido através de uma resposta sincera e breve. Então decidiu mentir, para tirar o problema de cima.
- Porque estou sem trabalho e não tenho o que comer.

Isso compadeceu Nicolas, que era muito emotivo, e quase começou a chorar. Lhe disse que o trabalho é dignidade, e que sempre se pode seguir adiante, e mais um bocado de frases feitas e lugares comuns. Na realidade, apenas era consciente do que dizia, subjulgado como estava por sua beleza. E Cielo apenas escutava, rendida ante sua voz.

Bartolomeu saiu para buscar Nicolas, que não havia voltado para a festa. E estranhou muito ao encontrá-lo no jardim, falando com uma moça jovem e bela. Isso significava possivel perigo de suspensão de casamento e, consequentemente, segura perda de parte da herança, por isso interviu.
- Está acontecendo algo, Bauer? - perguntou Bartolomeu escudrinhando Cielo.
- Não, não... - respondeu Nicolas se afastando um pouco dela e tratando de fingir naturalidade.
- Quem é essa moça?
- É uma amiga. - respondeu rapidamente o doutor Bauer. - Uma grande amiga que estava me contando um grande problema que tem.
- Puxa, che... um problema... imagino que deve ser um problemão, não? digo, para que voce tenha precisado sair de sua festa de compromisso.

As palavras "festa de compromisso" estraçalharam o coração de Cielo.

- Sim, tem razão, já estava voltando. - se desculpou Nicolas. - É que minha amiga está sem trabalho e sem dinheiro, e essa é uma situação delicada.
- Mas, che, que injustiça! - se compadeceu com falsidade Bartolomeu. - Mas não há mal que dure cem anos, amanhã bem cedo sua amiga revisa os classificados e consegue trabalho em dois tempos. Certamente o doutor Bauer, com seus contatos, algo te consegue. - disse para a jovem.
- Quem é o doutor Bauer? - perguntou Cielo.
- Eu sou o doutor Bauer. - disse Nicolas olhando-a nos olhos, com intenção. - Minha amiga é muito piadista. - se justificou ante Barto.
- Então voce é médico? - respondeu Cielo, embelezada com Nicolas, esquecendo que ele acabara de dizer a Bartolomeu que eram amigos.
- Não, arqueólogo. - Respondeu Nicolas arregalando seus olhos, e acrescentou olhando festivo a Bartolomeu: - Não para de fazer piadas minha amiga.

Bartolomeu estava um pouco nervoso ante a forma em que Nicolas e sua duvidosa amiga se falavam, e quis apressá-lo para voltar para a festa, mas de repente Nicolas teve uma ideia que, ainda que não tivesse nenhuma sensatez, lhe pareceu brilhante. Diante de si mesmo pensou que era um grande gesto de sua parte ajudar a essa pobre garota, mas omitiu aceitar que o que ia fazer só faria por um inconfessável desejo de mantê-la por perto.
- Pensava, e comentava com ela... - disse Nicolas. - Bom, que talvez voce precise de alguem que te ajude nessa fundação maravilhosa que tem.

Tanto Cielo como Bartolomeu se surpreenderam muito. Cielo não esperava semelhante ideia, e Bartolomeu jamais aceitaria: nenhum estranho podia se imiscuir em suas atividades.
- Gostaria muito de ajudar sua amiga... - disse com extrema falsidade e o olhou dando pé para que dissesse o nome dela.
- Ah, sim... minha amiga... - respondeu Nicolas olhando para Cielo, cujo nome desconhecia, esperando que ela reagisse.
- Cielo - disse ela rapidamente.
- Cielo - repetiu quase em uníssono Nicolas, pensando que não havia nome mais perfeito para ela que esse.
- Minha querida Cielo, adoraria poder te ajudar... e não sabe o quanto necessitamos desse tipo de ajuda na Fundação. Mas não temos dinheiro, só temos o suficiente para alimentar os pobres pirralhos.
- Isso não é problema. - Disse Nicolas, que acabava de ter uma segunda ideia insensata. - A verdade, Bartolomeu, é que eu tinha muita vontade de te ajudar com sua fundação, e não sabia como. Voce contrata Cielo e eu pago o salário. Assim ajudo aos dois.

Cielo e Bartolomeu voltaram a se surpreender em uníssono. Cielo, com uma secreta alegria pela possibilidade de se manter por perto desse loiro tão lindo, e Bartolomeu, encurralado, não sabia como faria para eludir esse problema.
- Mas, Nicky... - tentou dissuadi-lo Bartolomeu. - Voce acha? Se encarregar com esse compromisso...
- Sim, não falemos mais. Eu pago a Cielo para que trabalhe na fundação. É um compromisso!


Quase Anjos - A Ilha de Eudamón (Português)Where stories live. Discover now