A Invasão de Angeles - II

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Para Bartolomeu o dia não melhoraria. Com a repentina rebeldia de seu filho, se somou um preocupante protesto que lhe fez seu futuro cunhado.

Descia do andar de cima quando cruzou com Nicolas, que vinha da cozinha. Bartolomeu sorriu aliviado: ver Bauer depois do frustrado compromisso augurava certa esperança. Mas se surpreendeu quando Nicolas lhe disse que, antes de ver Malvina, queria falar com ele. Barto temeu pelo pior: que se quase cunhado lhe manifestasse uma mudança de planos. Mas o descolocou completamente o assunto do qual Nicolas queria falar.

- Bartolomeu, quero que falemos das crianças de sua fundação. - primeiro sinal de alarme. Nem os garotos, nem a fundação eram temas dos quais Barto queria falar com Bauer. - Eu sei que deve te custar muito levá-la adiante - continuou Nicolas - mas quero te dizer que descobri algo bastante grave. - Segundo sinal de alarme, "descobri" mais "grave" não soava nada bem.
- Do que está falando, Nick? - perguntou Bartolomeu, tentando se mostrar relaxado, enquanto pensava em argumentos para rebater o que essa incômoda testemunha havia descoberto.
- Ontem a tarde vi alguns dos garotos da fundação se fazendo passar por romenos, pedindo esmola, e, muito possivelmente, roubando.

Bartolomeu se sentiu morrer. O que Bauer havia descoberto era irrefutável, e insultou sua própria cobiça por te-los mandado fazer os romenos no dia do compromisso e, justamente, a poucos passos da mansão. A política decidida ante uma eventualidade como essa era negar, e foi isso o que fez.
- Acho que está equivocado, Nicolas.
- Não me equivoco, eram eles.
- É impossível.
- Eram eles.

Bartolomeu ficou sério. Entendeu que enfrentava um momento delicado: seu futuro cunhado havia descoberto seu segredo, e ele deveria silenciá-lo. Isso, claro, por um lado impossibilitaria o casamento de sua irmã e, por outro, lhe custaria uns tantos milhões. Pensando nessas obscuras tarefas, lhe custou entender o que estava ocorrendo quando Nicolas lhe disse:
- Não se enoje com eles, por favor. São crianças, certamente é o que aprenderam na rua. Sei que voce faz de tudo por eles e que vai te doer muito por ter ficado sabendo, mas acho que tinha que saber.

Bartolomeu demorou uns poucos segundos para compreender a situação. Nicolas havia descoberto os pirralhos fazendo a farsa dos romenos, mas havia interpretado como se fosse uma travessura deles, não como uma ordem sua. O alívio pela situação de perigo que havia vivido o emocionou até as lágrimas. Emoção que Nicolas interpretou como grande decepção por ficar sabendo das atividades de seus tutelados.
- Não fique assim, Barto! Compreendo que deve ser forte para voce, mas entenda que essas crianças tiveram uma vida muito dura. Não os castigue, por favor.
- Ai, querido Nicky... voce sabe o quão delicado isso é! Eu me mato por eles, trato de lhes dar um teto, comida... dignidade! E eles me pagam com delinquencia. Que dificil, che... que difícil! - disse enquanto ia tomando cada vez mais ênfase, como um verdadeiro ator.

Bartolomeu prometeu não castigá-los, nem contar a eles sobre o episódio, e sim, em troca, estar mais atento para que não se repetisse. Sentindo que já tinha a situação controlada, tentou conduzir a conversa para o futuro casamento, mas nesse mesmo momento outra frente foi aberta. Do setor das crianças, irrompeu Cielo, irada, era toda indignação. Atrás dela vinha Justina, absorta por esse furacão que era a empregadinha, a quem não podia controlar.

- Como que essas crianças não vão à escola? - increpou Cielo, com confiança, a Bartolomeu.

Bartolomeu ficou pálido. E Nicolas pensou entender que havia uma confusão.
- Sim, Cielo, as crianças vão à escola. Não? - quis confirmar com Bartolomeu, que tentou falar, mas não tinha palavras.

Cielo acabara de descobri-lo. Depois de tomar o café da manhã, acompanhou as crianças a seus quartos e quis saber onde guardavam os uniformes e os materiais para ir ao colégio, assim como os horários de cada um para poder se organizar melhor. Mas percebeu o silencio e os olhares cumplices que se estenderam entre todos.
- Nós não vamos à escola. - disse Rama.
- Como não? - perguntou Cielo absorta. Mas depois reparou na lousa e nas mesas de escola. - Ah, vem uma professora dar aulas aqui?

Mais silencio e olhares. Rama ia confessar que não iam ao colegio e nem vinha nenhuma professora, simplesmente, eles não estudavam. Mas nesse momento apareceu Justina. Não teve tempo de perguntar o que acontecia que Cielo já estava a increpando.
- Essas crianças não vão à escola?

Justina gaguejou ante a pergunta direta e inesperada.
- Mas como pensa que pode falar assim comigo, rrrrranhenta?!
- O que importa como falo com voce?! Me responda: essas crianças vão ou não vão à escola?
- Já me cansou! Vai embora daqui agora mesmo, imperrrrtinente!
- Não vou a lugar algum! A senhora não é ninguem para me expulsar, é tão empregada como eu.

As crianças se olharam com uma inconfesável satisfação, por fim alguem batia de frente com Justina. E, muito mais que isso, por fim alguem os defendia.
- Responda, vão ou não vão?
Justina, furiosa, bateu o pé no chão enquanto apontava com sua mão para o corredor, até que ficasse vermelha de raiva, e por ultimo gritou:
- Vai embora daqui agora mesmo, girrrrina!
Mas Cielo a ignorou, e olhou para as crianças.

Os garotos se olharam com temor, a presença de Cielo os envalentava um pouco, mas não tanto a ponto de desafiar Justina. Depois de tudo, estava claro que Cielo não duraria muito ali e depois eles teriam que continuar sofrendo com a cruel governanta. Mas Marianella não tinha tanto medo dela, e a coragem de Cielo alimentava sua propria rebeldia.
- Não, que o muro desabe, este courinho não pode continuar remendando... - todos a olharam absortos, tratando de entender suas rebuscadas metáforas. - Aqui ninguem vai para a escola. - concluiu ela.

Justina arregalou os olhos e agendou mentalmente hora e lugar do castigo que aplicaria a essa rata diminuta. De repente, viu que Cielo saiu disparada para a sala, resmungando algo com indignação. Justina adivinhou o que faria, e saiu atrás dela. E não se equivocou.

Cielo foi diretamente indagar o assunto a don Bartolomeu, o que não teria sido um problema se não estivesse presente o doutor Bauer.

Justina se olhou com Bartolomeu e ambos compreenderam que não poderiam se evadir dessa situação.
- Não vão à escola, nem tem professora particular... como pode?! - protestou Cielo.
- Isso é verdade? - perguntou Nicolas, incrédulo, a Barto.
- Claro que é verdade, eu não minto! - se enojou Cielo.
- É verdade, e não é verdade... - disse, enfim, Bartolomeu com tom lastimoso.
- Que resposta é essa? Como que é verdade e não é verdade? - gritou Cielo.
Havia se entusiasmado com seu papel de justiceira, mas ficou dura quando Nicolas a olhou sério e disse:
- Bom, suficiente, Cielo. Não pode falar assim com Bartolomeu, ele é o dono dessa casa e seu chefe. Agora escute a ele.

Cielo se sentiu incomodada ante a bronca de Nicolas, mas, para dizer a verdade, o piripipólogo tinha razão: havia se excedido. Como bem seus velhos haviam lhe ensinado, se desculpou assim que compreendeu seu erro.
- Me desculpe, don. Explique, por favor.
- Sua preocupação me comove, Cielito... - continuou com sua atuação Bartolomeu. - A realidade é que meus pirralhos estudam aqui, na sala que está junto dos quartos. Todos eles passaram muitos anos nas ruas, sem ir para a escola, e não posso mandá-los a nenhum colégio porque estão muito atrasados para sua idade. Então contratei os melhores professores para que estudem aqui. Mas... - disse, e se angustiou - ultimamente as coisas não andam bem, che. Me custa muito falar disso, mas a fundação está no vermelho. Poxa vida, que triste é isso!
E forçou seus olhos até que conseguiu chorar.
- Força, meu senhor. - se somou Justina a cena, palmeando-lhe um ombro.
- É que é muito triste, muito triste, não ter nem para pagar uma professora particular de ciencias sociais ou elementares, che!

Justina e Bartolomeu eram uma dupla extraordinária na hora de atuar, e ambos conseguiram comover tanto a Cielo como Nicolas. Mas o choque foi total quando Nicolas, compadecido, ofereceu sua solução:
- Não se preocupe, Barto, suas crianças vão estudar.
- Sim, sim, já sei, che... as coisas vão melhor, já sei.
- Não, a partir de hoje, agora mesmo, suas crianças vão estudar. Eu vou dar aula para eles!

Cielo não pôde conter um grito de alegria, enquanto que Justina e Bartolomeu ficaram mudos ante semelhante proposta de Nicolas.


Quase Anjos - A Ilha de Eudamón (Português)Hikayelerin yaşadığı yer. Şimdi keşfedin