Quase Anjos - A Ilha de Eudamón (Português)

A Invasão de Angeles - IV

Naquela semana, o doutor Malatesta teve que visitar a mansão Inchausti em várias ocasiões. Gino Malatesta era um psiquiatra que alguma vez deu um mal passo, se viu envolvido em um desvio desfavorável a uma obra social, e seu cúmplice e testemunha foi Bartolomeu. Desde esse momento, Malatesta se viu obrigado a responder a todos os pedidos ilícitos que Barto lhe fazia. Periodicamente, a fundação devia apresentar certificados de saúde e vacinação de todos os menores, Bartolomeu o obrigava a assiná-los, sem sequer examinar as crianças. Não gastava um centavo na saúde dos órfãos, para isso servia Malatesta. Qualquer formalidade burocrática o psiquiatra extorsionado solucionava.

Na realidade, Malatesta era um psiquiatra com escrúpulos, que se arrependia daquele erro e desejava poder apagar tudo aquilo e começar do zero. Mas os erros do passado se pagam no presente.

Quando recebeu a ligação de Bartolomeu requerendo sua presença imediatamente, Malatesta supôs, por sua voz estrangulada, que estava sofrendo um pico de pressão. Mas ao chegar na casa, descobriu que o motivo era outro, um muito peculiar.
- Há alguma maneira de descobrir se alguem se faz passar por amnésico? - disparou Bartolomeu. Parecia desesperado.
- Depende... geralmente sim. - respondeu Malatesta, estranhado.

Então Bartolomeu lhe referiu os acontecimentos recentes, e não precisou se deter de sobra em alguns detalhes do passado, pois Malatesta estava a par de tudo, ou quase tudo, já que ele havia tido que assinar as certidões de óbito tanto de Amália Inchausti como da desgraçada Alba. Ambos entraram em panico, e a primeira hipótese que pensaram foi que a aparição de Cielo havia sido o começo de uma elaborada vingança por terem querido se desfazer dela quando era uma menina. O panico não se devia só a possibilidade de perder a herança nas mãos da legítima herdeira, senão que perder a liberdade pelos crimes cometidos.

No entanto, Cielo não manifestou nada de tudo isso. Pelo contrário, quando Bartolomeu foi increpá-la, disposto a tirar o problema de cima com suas próprias mãos, Cielo referiu os acontecimentos com total normalidade.
- Quando eu tinha dez anos, os velhos me encontraram no bosque. Eu não me lembrava de nada, e nunca mais me lembrei. Não lembro nem de como me chamo. Eles me deram o nome Cielo, e seu sobrenome, Mágico. Sou amnésica. - relatou a jovem com naturalidade.

Para Bartolomeu, a história da amnésica soou como um conto chinês, e por isso citou Malatesta. Temia que tudo fosse uma elaborada e retorcida vingança por parte da falsa empregadinha, Angeles Inchausti, alias Cielo Mágico.

Com a desculpa de fazer um exame preocupacional, a conduziram ao escritório onde Malatesta a esperava. Ela supunha que ele lhe faria uma análise e algumas perguntas sobre seu estado de saúde, mas o doutor somente a convidou para conversar.
- Bartolomeu me disse que voce sofre de amnésia, é certo?
- Não me lembro! - brincou Cielo. Não vivia sua amnésia como algo doloroso, mas logo ficou mais séria e falou do tema. - Algo aconteceu comigo, certamente, quando eu era pequena, e apareci em um bosque, sem me lembrar de nada. De vez em quando tenho sonhos, mas assim que acordo me esqueço do que sonhei. Não sei se antes tinha família ou não, mas os velhos que me criaram buscaram, colocaram cartazes, avisos. Ninguem apareceu. Não sei se tenho pai ou mãe, ou irmãos.

Nesse momento se ouviu um estrondo, como um golpe dado com um objeto metálico contra outro. Cielo se deteve, esse som lhe provocou uma estranha sensação. Os barulhos se repetiram mais quatro ou cinco vezes e depois pararam. Por trás da porta do escritório, Justina, Malvina e Bartolomeu estavam à espreita, tratando de escutar as repostas de Cielo. Bartolomeu, acostumado com esses barulhos, os desestimou.
- Faça uma revisão nesse encanamento de uma vez, che! - ordenou a Justina.
- Agora mesmo! - disse ela, e aproveitou a ocasião para se retirar. Sabia perfeitamente o que eram esses barulhos.