Os órfãos e os riquinhos - V

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Thiago se esqueceu da briga, de Tacho, de Nacho e do mundo, que caiu em um cone de sombras. A unica que via, como iluminada por um refletor, era a Mar. Thiago avançou devagar até ela, sorrindo. Se tivessem sido os protagonistas de um filme, nesse momento teria começado a tocar a música romantica. Talvez em um filme o diálogo que sustentassem não teria sido tão prosaico e óbvio.
- E no fim, voce veio. - disse Thiago, aceso.
- E no fim, vim. - ousou responder ela, rogando que ele não acrescentasse nada mais, pois se achava incapaz de sustentar um diálogo coerente.
- Vem, passe. - completou ele.

Ela sorriu e começou a avançar até Jazmin, que estava mais distante, increpando a Tacho, mas Thiago, que já não esperava que ela viesse, não estava disposto a deixar passar essa oportunidade que achava estar perdida, e a freou, tomando-a de um braço.

- Espera. - quase suplicou.
- O que? - o interrogou ela, olhando para o braço, com uma expressão que não quis ser reaça, mas pareceu.

Ele percebeu perfeitamente o tom de sua pergunta e a gestualidade de seu corpo, e a soltou.
- Não, nada, queria conversar, nada mais. - necessitou esclarecer.
- Ah, bom... - disse ela, se perguntando sobre o que poderiam conversar.

Ambos se olharam por um instante. Eram dois estranhos e, por essa razão, não tinham muito do que falar, ainda que, ao mesmo tempo, havia bastante coisa das quais saber. Thiago rogou que lhe ocorresse algum assunto para abordar urgentemente, e abriu a boca para falar; apesar de que ainda não sabia o que dizer, confiou em que uma vez dita a primeira palavra, o resto viria sozinho. E assim foi.

- Você não sabe da ultima! Tacho quase se agarra a trompadas com Nacho.
- É sério que quase lhe acomoda os parafusos? - disse Marianella, aliviada de que ele tivera puxado um assunto que não fosse ela.

E assim começaram a conversar, e conversando aproveitaram para se olhar, e admirar, mutuamente, esses sorrisos que os subjulgavam.

Tacho e Rama sentiam sua noite perdida e estavam considerando irem dormir. Tacho via como Jazmin continuava falando com Nacho, ainda que não deixava de olhar para ele. E Rama observava como Marianella conversava animadamente com Thiago, sem sequer perceber a ele. Pôde imaginar como em breve algo aconteceria entre eles, lhe dava muita impotencia descobrir que para outros era tão fácil fazer isso que para ele resultava impossivel. Por outra parte, a situação lhes recordava o que viviam diariamente: o mundo era para os outros. Estava considerando se retirar para seu quarto, onde Alelí e Lleca brincavam com o filho de Nico, quando aconteceu algo que, inesperadamente, mudou sua sorte.

Como era de se esperar, o vestido com o que Tefi havia tido que se conformar de ultima hora, não a agradou, e passou mais de duas horas escolhendo o que vestir para o que seria sua noite perfeita. Como havia ficado muito tarde, pediu a sua mãe que a levasse. Julia a acompanhou até a porta. Bartolomeu as recebeu com extrema amabilidade, fez Tefi passar e convidou sua mãe - sempre era bom ter amigos advogados - para tomar um café na cozinha com ele, sua irmã e seu cunhado. Julia aceitou, já era bastante tarde e era preferível esperar sua filha ali mesmo.

Tefi foi direto para a sala. Como ouviu que estava terminando de tocar uma música, preferiu esperar que começasse a seguinte; era mais propício para uma entrada triunfal. Então quando a música seguinte começou a ser ouvida, ela avançou até a sala desfilando como em uma passarela, mas teve uma dupla decepção: ninguem pareceu notá-la e, além disso, Thiago estava conversando, animadamente, com a moreninha desagradável da fundação. Isso a ofuscou tanto que demorou alguns segundos para perceber que o vestido que a outra vestia era identico ao que haviam roubado de sua mãe, o que deveria ter sido seu. Que essa pobretona lhe houvera roubado o vestido era gravíssimo, mas que lhe roubara a Thi era inadmissível. Foi direto até ela, e sem cumprimentar a increpou:
- De onde tirou esse vestido?
- Ei, Tefi, o que foi? - disse Thiago, surpreendido.
- Onde o comprou? O comprou por acaso? Porque esse vestido é caríssimo, não sei de onde voce deve ter tirado esse dinheiro...

Thiago se incomodou muito com a inesperada atitude de Tefi, e percebeu o incômodo que Marianella começava a sentir.
- O que voce tem, Tefi, está louca?

Não estava louca. Enquanto escaneava o vestido de cima a baixo, localizou o mesmo buraquinho que sua mãe ia costurar. Já não havia duvidas: era o seu.
- Esta parda roubou esse vestido da minha mãe! - gritou, e todos os presentes pararam de falar para observar a situação.
- Eu não roubei nada! - se defendeu Mar, mentindo.
- Sim, voce roubou esse vestido, ladra!
- Tefi, está se confundido... - mediou Thiago. - Esse vestido deve ser parecido a algum da sua mãe...
- Não é parecido, é esse! Hoje fui buscar um vestido e escolhi esse, e pedi a minha mãe que costurasse um rasguinho. Depois minha mãe me disse que uma menina entrou na loja e que lhe roubou o vestido. E o vestido era igual a esse, e tem o mesmo rasgo, no mesmo lugar!
- Eu não o roubei! - persistia Mar, mentindo.

Jazmin olhou para ela, compadecida, sabia perfeitamente que Mar o havia roubado. Tacho e Rama se olharam tensos.

- Mãe! - gritou Tefi, e Mar empalideceu. - Minha mãe está na cozinha, com seu pai; que venha ela e diga se Mar foi quem o roubou.

Mar quis ir embora, mas Tefi a freou; Thiago quis separá-las, e no meio da gritaria se impôs a voz de Bartolomeu.
- O que está acontecendo aqui?

Todos giraram. No corredor que dava para a cozinha estava Bartolomeu, atrás dele aparecia Malvina, e atrás dela, Julia. Ao mesmo tempo, desde o alto da escada apareceu Cielo, tambem alertada pelos gritos. Ao ver sua mãe, Tefi gritou.

- Mãe, não é verdade que esse é o vestido que te roubaram?

Julia não necessitava vê-lo, havia reconhecido Mar. Lhe deu muita pena ter que confirmar a acusação de Tefi.
- Sim, essa menina esteve hoje na minha loja, e me faltou um vestido idêntico a esse. - comentou, se aproximou dela e olhou o vestido de perto. Com dor, acrescentou: - É o vestido que me roubaram.

Estupor geral.

- Como pôde roubar? Como pôde fazer isso a meu pai? - disse Thiago com desilusão e desprezo.

Mar se sentiu morrer. Viu a profunda decepção de Thiago em seus olhos. Viu o desprezo com o que todos os metidos a olharam. Viu a furia contida de Barto. E viu, no alto da escada, a expressão doída de Cielo. E foi nesse momento que se ouviu a voz de Rama.

- Marianella não roubou esse vestido. Eu o roubei. - mentiu.

Todos giraram e olharam para Rama, que avançou e olhou para Julia.
- Mar adorou o vestido, mas não podia comprá-lo. Eu quis presenteá-la, mas tampouco podia pagá-lo. Perdão, sei que é péssimo roubar, mas eu só quis dar um presente a minha amiga. Ela não sabia que eu o havia roubado.

Esse episódio deu por terminada uma festa na que quase ninguem pôde cumprir com suas expectativas.
Nacho ficou sem a noite apaixonada que desejava; Jazmin se foi sem conhecer o príncipe dourado, Nacho havia resultado ser um playboy insuportável; Tacho não só não havia podido abordar Jazmin, senão que além disso, ela agora estava furiosa com ele; Tefi não poderia despertar no dia seguinte nenhuma inveja já que nada havia acontecido entre ela e Thiago; e Thiago não só não havia podido derrubar o preconceito que Mar tinha sobre ele, senão que o havia aumentado, desconfiando dela quando era inocente; Mar havia perdido de um golpe só a chance de se sentir uma garota normal. Mas Rama, sem planejar, havia conseguido que Mar percebesse a sua existencia, e havia ganhado, definitivamente, um lugar em seu coração.


Quase Anjos - A Ilha de Eudamón (Português)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora