A Mansão Inchausti - VI

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A comoção não ocorreu quando a abandonaram no bosque. Quando ela chegou ao bosque, nessa noite de tempestade, já estava amnésica. O que a deixou prisioneira em um lugar sem tempo em sua cabeça foi a morte de sua mãe.

Angeles Inchausti estava vagando em um escuro corredor da mansão de sua avó. Em um quarto, atrás de uma porta entreaberta, sua mãe gritava e chorava. Um estranho homem de cachos e uma sinistra mulher toda vestida de preto, com turbante e uns olhos enormes, negros, estavam com sua mãe. Em um tempo que lhe pareceu eterno, ouviu um último grito de sua mãe e o choro de um bebê. Nada mais. A porta se abriu depois de uns minutos. A mulher segurava seu irmão ou irmã, não sabia. E o homem lhe disse, quase sem olhar para ela:

- Mamãezinha espichou. Passou para a melhor vida.

– Quer dizer que morreu – traduziu a mulher vendo que a menina não entendia.

Esse foi o final. Aí se terminou Angeles Inchausti. O que seguiu foi como um sonho estranho. Como uma madeira no mar, ela se movia de um lado para o outro, sem saber onde estava. Quando Bartolomeu e Justina a abandonaram no bosque, nessa fria noite de tempestade, ela já não sabia quem era. E tampouco saberia na manhã seguinte, quando um homem mais velho que cortava lenha no bosque a encontrou, moscando junto a uma árvore.

O homem a levou para a carruagem onde vivia com sua mulher. Eram os donos de um modesto circo itinerante, o Circo Mágico. Ambos já eram velhos e haviam perdido, há alguns anos, sua única filha. Se compadeceram dessa pobre menina perdida no bosque, que apenas falava. Não sabia onde vivia nem como se chamavam seus pais. Tampouco recordava de seu próprio nome. Amanda e Aldo Mágico eram muito gente boa e faziam sempre o correto, por isso comunicaram o descobrimento à polícia, que confirmou que não havia nenhuma menina procurada na zona. Publicaram sua foto nos jornais, mas ninguém lhe reclamava. Enquanto isso, o juiz de menores decidiu que a menina permaneceria com o casal Mágico, em pouco tempo deram como sua família.

Amanda era muito doce e se ocupava dela com muito esmero. Começou a chamá-la de cielo, carinhosamente, e o que surgiu como um modo afetuoso de chamá-la, se transformou, com o tempo, em seu novo nome. Assim nascia Cielo Mágico. Cielo não parecia sentir falta de sua antiga vida. Não só não a recordava, mas também não se esforçava para isso. O único que conservava de seu passado era uma pulseira de pedrinhas de plástico, com um símbolo estranho. Se sentia feliz vivendo ali. Era a mimada de todos os artistas do circo, passava o dia inteiro na carruagem dos anões, voltava sempre com algum machucado da carruagem dos malabaristas, ou toda pintada depois de estar com os palhaços. Mas o que realmente a fascinava eram os equilibristas. O senhor Pierre Morel, que era o patriarca da família, não permitiu a Cielo se aproximar da corda bamba durante muito tempo.

– Para subir na corda bamba tem que saber equilibrar-se na vida - dizia elíptico.

Passaram-se meses, e nunca puderam encontrar o paradeiro da família de pequena Cielo. Finalmente o juiz concedeu ao casal Mágico a tutela da pequena, a quem puderam documentar. Cielo Mágico já tinha uma identidade. Assim, dia a dia, mês a mês, e ano a ano, Cielo foi crescendo feliz em um mundo fantástico. Ali não havia os típicos animais de circo, já que os Mágico não estavam de acordo com utilizá-los nas provas e números circenses, mas havia os cachorros. Cada carruagem havia dois ou três cachorros. Cielo já conhecia todos por seus nomes. Passava seus dias entre artistas, lança-chamas e malabares, entre palafitas e violões. O circo era um aglomerado de artistas de distintas nacionalidades, pelo que Cielo começou a desenrolar uma curiosa forma de falar muito particular. Era palhaça com palhaços, maga com os magos e bailarina com os bailarinos. Mas o único que não podia se aproximar era a corda bamba. Será por isso que seu grande desejo era ser equilibrista.

Quando completou quinze anos, o senhor Morel chegou até sua carruagem com uma grande vara de equilíbrio, e como presente de aniversário lhe comunicou que estava disposto a aceitá-la como aprendiz. Cielo Mágico começou a dar seus primeiros passos na corda bamba. Começou no chão, e logo foram subindo mais alto. Com grande destreza e vontade, foi se transformando na melhor equilibrista que o senhor Morel havia visto em sua vida. Quando completou os dezoito anos, fez sua estreia profissional. Havia se transformado em uma mulher de uma beleza única, esquisita. E o circo Mágico arrancou com a nova artista.

Cielo amou muito a seus velhos, como ela chamava com grande afeto ao casal que a havia criado como uma filha. Já eram velhos, e temia não poder desfrutar deles durante vários anos mais. Quando Cielo tinha dezenove, Aldo morreu, e dois meses depois, Amanda, que não sabia viver sem ele. Cielo voltou a ficar órfã pela segunda vez. Mas já era uma mulher bem preparada na vida, por isso era uma excelente equilibrista, como dizia o senhor Morel. Sem os velhos, o circo começou a se dissolver. A solução foi vendê-lo, por preço de banana, a um empresário de duvidosa procedência, que manteve os artistas, mas, diferente de seus donos originais, era um explorador. Pouco a pouco os artistas começaram a ir embora, e Cielo entendeu que se aproximava o momento de fazer sua última apresentação. No final de março de 2007 se despediria sobre a corda bamba do Circo Mágico. Mas um incidente involuntário precipitou sua partida.


No ar, se podia respirar, se podia pressentir. A magia e o amor chegariam a mansão Inchausti. Em 21 de março de 2007, enquanto Marianella entrava pela primeira vez na Fundação BB, Nicolas Bauer, a ponto de se comprometer, tentava em vão desembaraçar o cabelo de Cristóbal no quarto do hotel. Malvina corria desesperada pela mansão ultimando os preparativos da festa. Rama, Lleca e Alelí entravam no Circo Mágico, seguindo a ordem de Bartolomeu, com a intenção de roubar. No mesmo momento, Cielo deslumbrava o público com mais acrobacias, e o avião em que Thiago viajava pousava serenamente na pista. Enquanto tudo isso acontecia simultaneamente, como se cruzasse os elos que uniriam em um ponto os diferentes destinos, em frente a mansão Inchausti, uma misteriosa senhora de cabelo prateado observava o relógio com um sorriso esperançoso.

Quase Anjos - A Ilha de Eudamón (Português)Where stories live. Discover now