Capítulo 10 - Parte 05

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— Eu sei, eu sei que vocês não acreditam nessas coisas. Isso que é interessante. Vocês são muito lúcidas. Mesmo os homens mais cultos, mais sábios do mundo não possuem a mesma lucidez que vocês possuem. Fico encantado, como um gato, que brinca com a própria comida. Vê? Eu te digo isso, e você não tem qualquer reação. Simplesmente não a aflige. Existe essa relação entre os homens, também. Os homens possuem esta ligação com uma alma única, um espírito compartilhado. Talvez esse seja o único espírito que exista. E toda a individualidade, toda a ideia de que são uma pessoa, não passa de uma mentira. Eu tenho certeza que eles podem sentir quem somos, tenho certeza que eles podem supor que somos vorazes. Não somos uma raça nova. E a alma dos homens também é antiga. Mas os homens vivem vidas muito curtas, e são incapazes de ouvir a voz desse grande espírito. Ouvem sussurros. Mas pra eles, é somente vento. Vou confessar mais algo pra você. Seu fim está próximo, e então poderei analisar se o que penso é verdade, se as informações que te passo, de alguma forma chegarão a suas irmãs espalhadas por esta terra. Nós não ouvimos nada. Não temos qualquer relação com qualquer grande espírito. Sabemos que existe, mas não escutamos. Tudo abarcamos com o pensamento. Temos, claro, sentidos e força superior ao homem. Mas acredito que mesmo entre mim e você, não exista uma diferença expressiva. No entanto, não temos essa sensibilidade superior, que beira a premonição, que vocês possuem. Tudo reduzimos a uma operação lógica, e as premissas revelam o mundo.

— O que você me diz não significa nada pra mim! Esperava que os devoradores fossem menos idiotas.

— Não esperava qualquer refinamento de você, mesmo!

O monstro que viria a se tornar Lara prestava muita atenção em tudo. Não nas palavras sem sentido, mas nos gestos, no olhar, na figura do homem em pé atrás do homem louro. As vestes eram impecáveis, os cabelos bem lavados, as jóias de ouro nos dedos do homem louro, seus modos exagerados e arrogantes. O outro homem era igualmente medonho. A despeito da sobriedade, da ausência de ornamentos, não restava dúvidas de que suas roupas eram de um tecido de qualidade, os cabelos longos e bem cuidados. Mas o cheiro, era como estivesse diante de dois homens podres.

Provavelmente os homens não eram capazes de perceber. Ela conseguia senti-los a quilômetros de distância. No entanto, assim, diante deles, ficou surpresa de saber que lhe cheiravam tão mal. Só havia um motivo para aquele odor. Eles cheiravam ao sangue de suas irmãs mortas.

Alguns poucos segundos pareceram uma eternidade. O vento cantava ao passar pela copa das árvores, e os animais muito agitados, fugiram todos o mais rápido possível. Longe, corria um riacho tranquilo, um córrego de água turva, que devia esconder alguns crocodilos. Os homens do bando dos devoradores que estavam diante deles, divididos em dois grupos, estavam distantes, o que indicava que eles tinham restrições em serem descobertos. Pensou em fugir, e ir na direção do grupo mais próximo, mas dissuadiu-se desta ideia. Ela tinha noção da velocidade que os dois tinham. Eles provavelmente a pegariam.

Eles não a matariam com as mãos. Cada traia um objeto cortante enfiado numa bainha à cintura. O monstro que um dia se tornaria Laura, comparando com o seu reino, imaginou que fossem facões. Eles revelaram longas espadas. Eles as giraram no ar, exibindo suas habilidades.

— Como vocês nos chamam?

— O mundo as chama de vampiras.

— E como o mundo os chama?

— O mundo não sabe da nossa existência. Eles não nos deram nome, além de senhor, patrão, príncipe, duque.

— E como vocês se chamam a si mesmos?

— Nos nos conhecemos como filhos e hórus.

— Gostaria de saber porque.

— Você está muito curiosa para alguém que vai morrer. Tudo bem, eu digo. Hórus era o deus de uma civilização antiga. Seu símbolo era um falcão e o sol. E os falcões se alimentam de morcegos.

— Pra mim, vocês não passam de uma raça covarde de vampiros.

— Não diga absurdos. Não nos comparamos com vocês. Somos uma raça superior. Se houve uma origem, tenho certeza que somos descentes dos deuses. Seja qual for o material de que são feitas, vocês foram produzidas dos restos. É uma grande ironia que dependamos de nos alimentarmos do sangue e da carne de vocês. É uma grande ironia que nenhuma outra substância no mundo seja capaz de nos satisfazer. Só posso imaginar que o mundo que nos gerou deixou de existir a vários séculos, e os últimos resquícios desta era dourada seja exatamente criaturas tão toscas.

— Não importa o que você diga. Se vocês dependem de nós, isso me diz exatamente o contrário de suas palavras. Vocês são os vampiros imperfeitos, porque vocês dependem de nós, e nós existimos muito bem sem vocês.

— Com uma diferença. Nós as caçamos, e vocês não serão capazes nem em 1000,00 de realizarem qualquer mal contra nós.

Por um instante os animais da noite ficaram silenciosos. O vento soprava todos os cheiros para as narinas da mulher que um dia se tornaria Laura. Ela sentia os animais que fugiram pra longe, sentia o cheiro dos homens a certa distância, o trabalho das árvores, um córrego seguindo seu curso mais distantes. No leito do curso de água, podia sentir os peixes, uma cobra rastejando a alguma distância. Ela sabia que era venenosa. Tudo parecia tranquilo. Parecia o momento perfeito para morrer. Um corpo caísse ali, alguém que gritasse, pedisse por ajuda, não teria muita esperança. As estrelas do céu tropical descreviam os movimentos de uma mão convulsa, de um trabalhador frenético. Seria o leito de um rio repleto de pedras brilhantes. Alguém diria que cada uma daquelas luzes representava a alma de uma pessoa. Os seus súditos já acreditaram nisso. Que um deus lendário teria espalhado um tipo especial de milho, e que as constelações eram essa grande plantação divina, que um dia encontraria o momento de sua colheita. Ela não veria esse dia. Nenhum homem seria capaz. Homem ou mulher, mortal ou vampiro. Todos estavam condenados num curto espaço de tempo. Alguns mais, outros menos.


Nandi e os Filhos de Hórus (Em Revisão)Where stories live. Discover now