Capítulo 10 - Parte 02

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Os homens eram criaturas débeis. Podiam ser abatidos repentinamente, sem nem saber o que os tinha atingido. E ao mesmo tempo, eles se tornaram com o decorrer dos séculos egoístas demais para se procurem com que morre ao seu lado, na casa do vizinho. Eles perderam a capacidade de se unirem contra monstros. Os homens se tornaram suas próprias feras.

As palavras de seus algozes não chegavam a atingi-la. Não sabia se eles consideravam que elas eram iguais aos humanos, e possuíam sentimentos semelhantes. Ela acreditava que com o tempo perdeu qualquer resquício de sentimentos. Ela sentia somente sede.

Sentir dor, porém, não tinha o mesmo significado para ela do que tinha para humanidade. A dor era terrível sim, ela tinha consciência disso. No entanto, ela seria capaz de correr vários quilômetros com o ventre aberto sem se incomodar. A dor se tornou um detalhe. Turvava seus pensamentos, guiava suas ideais por caminhos indefinidos, mas não era capaz de paralisá-la. De fato, não conseguia mais se lembrar de um tempo em que aquela dor terrível não existiu.

Houve uma época em que ela era menos aguda, com certeza. Fora a mesma época que encontrou sua irmã, uma irmã diferente, que não fugia de se encontrar com ela. Antes, veio ao seu encontro. Como estava desesperada, ela a recebeu.

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Uma carroça andava por uma estrada atolada de terra. Somente um louco se atreveria a uma jornada dessa natureza. A estrada brigava com a selva, e perdia. O verde ameaçava invadir e tomar a qualquer momento conta de tudo. Em alguns trechos, apenas um olhar treinado era capaz de distinguir o caminho e qualquer buraco no verde que levaria o viajante a se perder e nunca mais encontrar o retorno. Qualquer erro, seria mortal.

Anoiteceu rapidamente, e os viajantes buscaram qualquer lugar para se acomodarem e passarem a noite. O grupo era composto por dois homens e três mulheres. Os homens eram velhos desbravadores da mata, e as três mulheres eram mestiças, cabocas, mistura de portugueses com índias, com quem os homens tinham se amancebado. Uma delas sentia enjoo constante. Provavelmente estava grávida. A outra era sua irmã, e a acompanhava. A terceira era mulher do outro homem, e exibia uma saúde de ferro. Se estivesse grávida, era do tipo boa parideira, daquela que na véspera do moleque nascer, estão lavando roupa.

Quando as pessoas decidiam fazer uma daquelas viagens para vilas afastadas, dificilmente escolhiam os caminhos no interior da mata. Elas eram conhecidas como perigosas. Apenas bandidos ou pessoas desesperadas se arriscavam assim. A maior parte das pessoas preferia os rios. No entanto, o controle do governo era relativamente mais severo nos portos, e tentar esse caminho era muito perigoso pra eles.

Eles eram uma mistura de bandidos e desesperados.

João e Manoel mantinham uma sociedade na venda de algumas mercadorias. Eles mantinham um negócio, um comércio em que vendiam gêneros alimentícios variados, mas que nas horas vagas, quando o estabelecimento estava fechado, dedicavam-se a infame atividade de emprestar dinheiro a juros, e comprar e vender ouro contrabandeado, trazido clandestinamente do garimpo.

Era uma atividade que todo mundo fazia. Não era mistério pra ninguém, e até mesmo homens respeitáveis da cidade tomavam parte.

O problema foi que João e Manoel fizeram um inimigo, e dos poderosos. Pedro Tavares, um juiz recém designado para a cidade, decidiu tomar as rédeas desta atividade clandestina e lucrativa, para o bem da coroa, e para o melhor gerir os assuntos do rei. Acredita do senhor Pedro, que os lucros da comércio ilegal do ouro deveria ficar com o próprio magistrado. Pensou que não seria salutar abolir prática tão enraizada na cultura do povo. Esperava somente que não se importassem com sua gerência.

Por essa razão do dia pra noite, ficaram marcados. Clientes antigos vieram até seu estabelecimento, altas horas da noite, quando exerciam suas atividades paralelas de respeitáveis criminosos, para avisar que em breve poderiam ser presos a mando do mais novo magistrado. Em verdade, muitos de seus devedores até torciam para que tamanha desgraça caísse sobre eles.

Não pouparam esforços, e rapidamente despacharam a maior quantidade de seus pertences pelo rio e seguiram caminho por terra. Ninguém imaginaria que tomavam aquele caminho. Seus pertences partiram disfarçados de mercadorias, e alguma quantidade de ouro ia escondida com eles, em tonéis de feijão e milho. O que levavam seria o suficiente para começarem uma nova vida. Por um tempo, pretendiam trabalhar apenas com o velho e bom comércio. Eram bons naquilo. Usar balanças viciadas, misturar água com a cachaça. Até que a poeira baixasse, e pudessem voltar a fina arte de emprestar dinheiro a juros. Não existia atividade mais lucrativa, e forma mais honesta de roubo.

Comiam algum restos de carne seca com mandioca. A mulher que parecia grávida quase não comeu. Os homens beberam boa quantidade de seu melhor destilado, e em pouco tempo roncavam enquanto as mulheres se acomodam embaixo de cobertores.

Nem suspeitavam que algo bem pior que uma fera os espreitava. Antes que assumisse o nome Laura, e depois que seu nome se perdera, ela sentia o cheiro do grupo, e ansiava pelo sangue em suas veias.

Mas ela sentia o cheiro de algo mais. Uma irmã vinha em sua direção. Aquilo era estranho. Elas nunca se aproximavam. Ela mesma não insistia.

E havia monstros em seu encalço também. Não podia dizer que eles a estavam caçando. Seus movimentos eram irregulares. Eles não seguiam seus rastros. O movimento deles seguia outro padrão. Eles estavam tentando encurralá-la. Pareciam querer antecipar seus movimentos. Ao mesmo tempo, eles eram persistentes. A um relativo tempo ela sentia que eles a estavam seguindo. Por momentos eles se afastavam, para depois voltarem a aparecer. Parecia questão de tempo, até que eles a encontrassem. Ela podia sentir. Ela podia supor. Eles a seguiam como quem desvenda um enigma, e traça um desenho no chão.

Era uma questão de tempo. Eles a encontrariam. Por enquanto, percebia que uma irmã se aproximava mais e mais. Pensou se atacava aquele pequeno e desprotegido bando naquela hora, ou se esperava até receber aquela visita esperada.

Podia sentir a sua presença vinda de longe. Não tinha dúvida, era uma irmã que se aproximava. Além da estranheza de senti-la se aproximando, começou a sentir alguma sutileza em seu odor, uma diferença. Aquela era diferente de todas as outras. Por essa razão, ficou quieta até que um vulto saiu da mata. Veio encontrá-la na copa de umas das árvores. Ela pulou no chão, e amorteceu a queda o melhor que pode. Ouviu-se somente um baque tênue sobre a terra.

Nandi e os Filhos de Hórus (Em Revisão)Where stories live. Discover now