Capítulo 07 - O cavaleiro e o anjo - parte 01

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Os carros não deixavam espaço para as bicicletas. Cristiano gingava entre uma pick-up monstruosa e carro qualquer de passeio cinza. Atualmente todos os carros pareciam ter um cor somente ou duas. Nas escuridão da noite chuvosa, não fazia diferença. Eles não paravam de buzinar pra ele.

Devia existir espaço para todos. Mas não havia. As ruas foram feitas para os dragões de metal. Ele corriam e cuspiam fumaça, jogavam lama e destroçavam pessoas. Vez ou outras, eles mesmos se confrontavam nos campos de concreto, devorando as pessoas que já estavam em suas bocas. Quem ia querer viajar dentro da boca de um dragão com os dentes afiados? A cidade inteira queria.

Cristiano com sua montaria singela era um herói grego contra os monstros cuspidos pelos deuses. Sua armadura era um short de tecido leve, e uma camisa de poliéster. O tecido exibia suas pernas musculosas, o corpo delgado, os braços robustos de rolar no tatame. Os detalhes berrantes não escondiam que fazia parte do seleto grupo dos seguidores dos gracie. Não tinha esperanças de chegar em casa ou de encontrar algo para comer. Sua família a muito tempo deixou de se preocupar com o que comia. Ele daria o seu jeito. Sobre as costas, amarrado por um faixa roxa, repousava o quimono dobrado, como uma mochila. Era sua armadura. Sua força de vontade, sua espada.

O treino tinha sido puxado naquele dia. O professor o fez rolar com gente pesada, e forte, ainda que pouco hábeis. Era somente um treino, e mesmo que musculosos, eram todos menos graduados.

Aqui um motorista jogava o carro sobre ele. Ali um pedestre avançava incauto na rua. Cristiano inclinava na sua montaria delgada, quase tocando o chão. Os malabarismo traziam um misto de medo e emoção. Inadvertidamente bateu em um retrovisor. Alguém lá dentro gritou pra ele. Ele não chegou a ouvir. E o engarrafamento não permitia que fosse perseguido. Driblou um carro mais adiante, e sumiu da vista de seu inimigo por alguns segundos pra toda a vida. A raiva que ele tinha, devia transferir para outro ciclista. Todos os motoristas tinham um rosto somente, da mesma forma que para aquele motorista, os ciclistas eram todos iguais.

Sua leve criatura mágica não tinha força própria. Bebia da energia do cavaleiro. Existia entre eles uma relação íntima. Mesmo que feita do mesmo material que seus inimigos nos campos de concreto, ela era diferente. Acostumou-se a chama-la de Carla. Poderia ser uma égua poderosa. Mas sua selvageria, sua sinuosidade, lembravam a montaria de um desenho antigo que guardou com carinho na memória. A princesa mononoke, pensava. Nesta obra antiga, produzida por um estúdio amado e estanho, um príncipe amaldiçoado, montado em um cervo, um príncipe de uma nação antiga, perdida, e também condenada, encontrava uma princesa que montava lobos. Não montava lobos como quem monta um animal. Viajava com eles porque os chamava de irmãos. Uma mulher abandonada pelos pais, criada por um espírito ancestral da floresta, uma loba anciã.

Qual era o nome do estúdio? Desviou de um carro, preso a dúvida. Avançou por uma rua, ultrapassou um sinal verde antes que os carros avançassem. Encontrou o nome do outro lado, quando emergiu dos faróis altos, alguns amarelos, outros azuis. Estúdio Gimbli.

Ouvia em muitos lugares que os desenhos japoneses eram uma febre. Mas não sabia onde estava o público tão vasto. Na sua vida, essa população era somente uma sombra. Seus gostos estranhos, ele não tinha com quem dividir.

Talvez pudesse sair em uma jornada, para um país distante, para resolver sua própria maldição, encontrar sua princesa selvagem, para que a história terminasse sem um desfecho satisfatório. Sua história de amor não deveria ser o tema principal desta grande obra que era o mundo. Por isso, ninguém deveria ver problema em seu drama permanecer sem solução, como um personagem secundário que o autor abandona. Lá deveria encontrar irmãos que assistiam desenho japonês e lutavam jiu jitsu, e que não tinham ninguém que sentisse falta deles.

Naquela tarde, quando saiu do trabalho, ele ligou para Márcia, e disse que queria encontrar com ela.

— Por que você não fala pelo telefone mesmo?

— Eu preciso falar com você pessoalmente.

— Não quero problemas pro meu lado.

— Que problema o que, menina? Vou passar aí com você agora.

— Está bem. Eu saio daqui a pouco.

Márcia era atendente numa loja um pouco distante da dele. Ele chegou na bicicleta e desceu dela esbaforido. Procurou um banheiro para disfarçar um pouco seu aspecto suado. Encontrou com Roberto, um conhecido seu, e amigo de Márcia. Ele indicou um banheiro no final da loja. Cristiano desviou da amiga, que não o viu, e correu para o lavabo. Arrumou-se o melhor que pôde. Quando saiu, percebeu que a amiga já estava do lado de fora, aguardando.

— O que você quer, Cristiano?

— Eu vim te lembrar que hoje é um dia especial.

— Especial pra quem?

— Pra nós. Hoje fazemos aniversário de namoro.

— Está de brincadeira, não é mesmo, Cris?

— Por que?

— Cara, vira o disco. A nossa história passou. A gente não tem mais nada.

— Nem uma amizade?

— Cara, tu sabe que esse negócio não dá certo. Não vamos confundir a coisas. Eu acho melhor a gente não se ver mais.

— Como assim?

— Cristiano, eu estou saindo com um outro cara.

— Quando você ia me contar?

— Eu não tenho a obrigação de dizer nada pra você, até porque a gente não tem nada.

— Eu acho que eu mereço uma explicação.

— não tem explicação, nenhuma, Cristiano. Olha pra você. Cara, Tu está de bicicleta. Tu não tem nem carro. E você quer que eu namore com um fracassado que nem você? Cara, eu quero sair, passear. E com você eu sou obrigada a pegar busão. Pior seria se eu tivesse que andar no guidão dessa sua bicicleta.

— E você não dá nenhuma valor ao nosso sentimento.

— Que sentimento porra nenhuma, mané! Tu tá falando sério mesmo. Eu quero sair. Eu quero um homem que tenha condições de me pagar um sanduíche. Cara, mulher custa dinheiro. Se tu não tem condições de pagar, é melhor não ter. Vai procurar uma baranga que tem carro, e vai poder te levar pras tua academia em que tu treina o dia inteiro, e fica te agarrando lá com macho fedorento. E depois vem me ver fedendo.

Nandi e os Filhos de Hórus (Em Revisão)حيث تعيش القصص. اكتشف الآن