Naquele dia a mãe acordou sem reconhecer a filha. Era extremamente desagradável quando ela acordava, depois do meio dia, perguntava pela própria mãe, e começava a agredir Rita, como se fosse uma estranha. Naquela noite, seu sono tinha sido irregular. As vezes isso acontece com uma pessoa com Alzheimer. Ela não sabe direito o horário de dormir, e acorda no meio da noite, e não quer mais dormir. Se ela é deixada sozinha, ela faz cocô ou xixi na cama, e deita em cima, se limpa nas paredes. Por isso, Rita dormia com a Mãe, para evitar esse tipo de surpresas.
Rita se levantou cedo ainda. Como ela gostaria de dormir mais um pouco. Mas a loja teria que abrir, e o pai não conseguia mais abrir sozinho. O sol mal tinha saído, o céu ainda escuro, e os primeiros clientes já chegavam. As pessoas saíam cedo pro trabalho, e passavam no pequeno comércio para comprar pão, ou tomar um café que não tinham tempo em casa. Senhores e senhoras, jovens senhores e jovens senhoras, senhorzinhos e senhorinhas, todos corriam para pegar a primeira condução que seguia para o centro. Iam para abrir as lojas do centro, para trabalharem em casas de família, para arrumar as crianças dos patrões para a aula, quando sequer sabiam se os próprios filhos iam.
Um senhor que vendia legumes na feira aproximou-se do balcão.
- Dona Ritinha! Já lhe disse. Case comigo, e deixe essa vida.
- Se eu casar com o Senhor eu vou ter três velhos pra cuidar: minha mãe, meu pai e o senhor. Pra quê eu vou querer aumentar o trabalho da minha vida, Seu Raimundo. Eu preciso de um homem que tenha condições de cuidar de mim. Eu quero ter uma família.
- Não diga isso, Ritinha. Eu quero uma moça de Jesus. São as melhores
- o Senhor poderia pelo menos ir pra igreja. Por que eu não quero um marido do mundo. Um perdido. Sangue de Jesus.
Dizia isso distraída, pegando um pano e passando sobre o balcão, quando um grupo chegou agitado, rindo. Eles escutaram a conversa da Ritinha. Ela percebeu e se encolheu vermelha.
- Seu Raimundo. Para de importunar a Ritinha que ela não é pro seu bico. Ela é pra filho de pastor. E o senhor não sabe nem ler, quanto mais ler a bíblia. Tem que aprender a ler primeiro.
- Eu não preciso ler a bíblia, eu tenho o amor no meu coração. Não tem bíblia melhor do que essa.
O grupo veio rápido, comprou algumas coisas, beberam um café e foram embora. O ônibus não tardou a passar. A parada ficava próxima ao mercado da família da Rita. Ela viu a multidão entrar apertada, e ir embora. Quem tinha tempo, ou era menor e mais fraco, preferiu esperar o próximo.
Às vezes ficava sonhando que um príncipe, ou antes, um jovem obreiro viria, a tomaria nos braços, eles se casariam abençoados pelo pastor, e partiriam para uma missão. Se possível iriam evangelizar índios nas reservas indígenas, que talvez fossem os últimos pagãos na face da terra. Pelo menos eram os mais próximos. Não pensaria duas vezes.
- não se pode amar mais os pais do que a Cristo. Pensava Ritinha. Mas seu obreiro não chegava.
Com o tempo passou a culpar a mãe. Sentia-se muito injustiçada. Ela teve condições de constituir a própria família, ter os próprios filhos, para adoecer no final. Infelizmente a graça de ter nascido mulher recaiu sobre Rita, e com essa graça a obrigação de cuidar dos pais velhos, e com isso, tinha perdido o direito de cuidar da própria vida. Talvez, pensava, Deus pudesse abreviar o sofrimento dela, e pudesse levar sua mãe para aguardar o grande dia do juízo, quando sua mãe doce e piedosa, ressuscitaria dos mortos para a vida eterna do paraíso na terra. Aquela mulher que estava ali, aquela megera, que mandava ela tomar no cu, que batia na cabeça dela com o que tivesse a mão, as vezes uma escova, ou uma panela velha que usava como penico, não era mais sua mãe. Ela não responderia por todos os impropérios, por todas as ofensas e obscenidades que proferia contra ela e contra o mundo. Sua mãe piedosa já tinha morrido. Um demônio instalara-se em seu lugar.
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Nandi e os Filhos de Hórus (Em Revisão)
VampireNandi saiu para a rua inebriada com o cheiro das pessoas. O culto terminou, e ninguém impedira a entrada de uma vampira na igreja. Suas roupas de mulher comportada incapazes de esconder suas curvas, sua pele escura como a noite, seu cabelo crespo e...