Capítulo 06 - O correspondente - parte 03

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Uma pick-up cinza com películas escuras os aguardava. As portas estavam abertas. Heitor falava fazendo gestos muito amplos do lado de fora, enquanto Atlas aguardava, encostado nos banco do passageiro, os pés cruzados sobre o chão, o olhar distante. Pessoas andavam na rua, como se fossem a um festa, o passo arrastado sobre o asfalto de má qualidade, fazendo o barulho característico da sandália sobre a terra muito seca.

Ronei entrou no carro sem fazer perguntas. Não era estranho encontrar em seu mundo com pessoas completamente desconhecidas para tratar dos mais variados assuntos. Um advogado surgido do nada, trazendo uma proposta de acordo, descarada, mas um acordo. A cena em questão, entretanto, possuía a sua peculiaridade. Os dois sócios de um grande escritório, perdidos no meio do nada, andando em um carro de luxo, para tratar de um processo esquecido em que um agricultor era acusado de matar outro agricultor. Que razões traziam aqueles dois ali, era um mistério. Permaneceu no carro silencioso. Heitor sempre sorridente. Atlas dirigia, silencioso.

— Detesto, pick-ups. Disse-lhe Heitor. Mas tem apenas estes carros para alugar.

— Alugaram aqui?

— Não. Alugamos em outra cidade. Viemos dirigindo pra cá.

Sim. Era óbvio. Não havia outra forma de chegar ali além de carro. Podia-se chegar de avião a capital mais próxima. Mas os quilômetros que os separavam da civilização, precisavam ser vencidos de carro. Não havia qualquer interesse de pessoa qualquer no mundo de incluí-los em qualquer rota de voo. Por um momento, sentiu-se um idiota. Sua companhia sempre sorrindo.

— Existe algum lugar que possamos ir? Algum lugar que possamos conversar?

— Algum lugar que possamos beber?

— Sim! Por que não? Beber seria ótimo. Muitas vezes viajamos apenas com esse objetivo. Disse sorrindo, olhando rapidamente para Atlas, que respondeu com um relance. Nada muito rápido. Tudo a certa velocidade que sua companhia pudesse acompanhar, e não ficasse assustado. Beber é uma ótima ideia.

— Não conheço muito bem a cidade, e cheguei a pouco tempo. E mesmo se tivesse algum tempo aqui, acho que não tem muito pra gente conhecer.

— Nossa! Você está muito pessimista! Deve haver alguma coisa. Todos os lugares possuem. Eu esperava que o Doutor fosse nosso anfitrião. Mas, devido a sua falta de experiência, faço questão de guiá-lo.

Disse isso muito animado, tanto que fez Ronei rir também sem motivo.

— Se me permitem, gostaria muito de saber o que os Doutores fazem aqui? Não é comum vermos sócios de escritórios em brejos atrás de processos fedendo a urina de rato.

— É tão ruim?

E de repente, o carro deu solavanco muito forte, que Heitor e Ronei foram obrigados a se segurar.

— Todos os correspondente são tão espertos quanto você?

— Acredito que esperteza seja a única vantagem que a gente tenha, já que não se pode contar muito com a ciência do direito. Essa, a faculdade não nos deu. E os juízes, se sabem, não aplicam.

Heitor soltou uma gargalhada.

— Realmente tenho algum apontamentos para indicar, gafanhoto. O direito que você aprende na faculdade não é a arte que se realiza no dia a dia. Enquanto ensinam que se deve realizar justiça, na prática tudo o que queremos são desculpas, para matar alguns e outros.

— Mas não existe pena de morte no Brasil.

— O que seria uma grande perda de tempo, porque a morte já estamos todos condenados.

— O senhor tem um ponto de vista interessante.

— Por que você se tornou advogado?

— Para realizar justiça.

— Essa é a desculpa. Qual o real motivo. Advocacia é o seu trabalho, não é mesmo. Por que você trabalha?

— Por dinheiro.

— Esse é o real motivo. É por dinheiro. Quase todos estão nessa jogada por dinheiro.

— Existe algo mais importante do dinheiro?

— De certa forma, sim. Existem bens mais valiosos que o dinheiro. Alguns ativos que o dinheiro não pode comprar.

— Como a vida?

— Não. Isso não. A vida humana é um bem sem qualquer valor.

— Você vai ficar brincando com essa criança?

Atlas dirigia por um estrada escura. Somente naquele momento Ronei percebeu que tinham deixado a cidade. Lá fora, se via somente a noite.

— Eu gostei do rapaz, Atlas. Não seja tão mal educado.

— Aonde vocês estão indo?

— Vamos conversar mais um pouco. Beber algo. Vamos relaxar. Os assuntos que temos a tratar precisam ser cuidados com a devida a atenção. E temos a noite toda. Nem tempo, nem dinheiro são problemas pra nós. E nós conhecemos um lugar.

Aos poucos Ronei percebeu que o carro acelerava muito, e depois reduzia por causa dos buracos, mas, na maior parte do tempo, o carro rodava a uma velocidade impressionante. A noite estava muito escura, e pouco podia ver além dos faróis, e era difícil acreditar como aquele homem dirigia, com extrema calma, algumas vezes guiando com apenas um dos braços.

— Não estamos indo muito rápido?

— Não se preocupe. Disse Heitor balançando a mão direito na frente, como se pudesse desfazer a preocupação como quem afasta uma porção de fumaça. Atlas é um ótimo motorista, e nada é tão rápido pra nós. Espero que você nos acompanhe. Você tem ambições, não tem, Doutor?

Lá fora, o borrão da estrada, parecia cada vez mais com um multidão de rostos e sombras, estendendo os braços e implorando pelo caminho. Deviam implorar por alguma esmola. Devoravam as vidas deixadas pelo caminho.

Ambições não faltavam em sua vida ou na dos colegas. A sede por dinheiro o tinha arrastado até ali. Tinha aceito aquela viagem e aquele emprego. Embora dizer que fez por dinheiro não era muito justo. Seria mais adequado dizer que aceitou por trocados, por comida, porque o que recebia era realmente muito pouco. Mas naquele momento, diante daqueles homens belos e misteriosos, ele talvez tivesse a chance de dar uma virada. E não estava disposto a perder aquela oportunidade. Mas a sua tensão, pensou, estragaria tudo. Esse tipo de gente, pensou, quando todas as necessidades por dinheiro estão satisfeitas, possuem apenas uma preocupação: afastar o tédio.

Para afastar o tédio, o cataram a beira de um brejo qualquer, andavam com ele num carro a uma velocidade assustadora, guiavam por entre as sombras, e tentavam distraí-lo por qualquer motivo. Talvez fosse o momento de tentar entretê-los também. Ele corria o risco perder qualquer chance, ou simplesmente ser abandonado no meio da estrada.

— Eu quero trabalhar para um grande escritório.

— Verdade? Parece coincidência que somos os donos exatamente de um.

— Uma feliz coincidência.

Nandi e os Filhos de Hórus (Em Revisão)Where stories live. Discover now