Capítulo 8 - O gigante da noite - parte 03

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Obviamente, todo o ser humano possui uma mãe. Shaka não poderia ter brotado da lama. Ele até poderia desejar, embora a história tenha demonstrado que ele não tinha qualquer vontade de fazê-lo. Pelo o que ela entendeu, ele não tinha vergonha da mãe. Ela o tinha criado sozinha, exilada de sua terra natal. Retornou apenas quando Shaka era um homem feito, e se uniu ao exército do pai. Ele mesmo se tornou rei, e quando a mãe morreu, Shaka perdeu a razão. Determinou que os homens não mantivessem relações com suas esposas por um ano. Quem violasse a lei, seria morto. O nome desta mulher tão amada por seu filho poderoso e perverso era Nandi. Naquela noite, Fátima começou a sangrar.

Caminhava para o terceiro mês. Naquela noite, o marido não estava em casa. Sinceramente, não sabia a quanto tempo ele estava ausente. Quando começou o sangramento, e passou a sentir cólicas, ficou assustada. Pegou o carro e foi para o hospital. Lá, na emergência, foi atendida prontamente. Perceberam o quanto ela estava nervosa. Ela segurava a barriga como se fosse cair, embora fosse muito cedo ainda, e a barriga não tivesse crescido. Repetia sem parar: meu filho! Ajudem meu filho!

As enfermeiras, compadecidas, sentaram-na numa poltrona azul. Não sabia dizer o que era, mas lhe deram alguns medicamentos e a mandaram esperar. Foi quando o sangramentos aumentou, e Fátima passou a gritar. Não sentia dor. Era mais um incômodo. Seu sofrimento não era física, mas chorava como se tivessem arrancado um braço. Uma multidão de pessoas logo foi atraída pelo desespero.

A médica que a atendeu naquela noite estava impaciente. Recebeu-a de mal grado. Pouco importava que Fátima tivesse perdido seu filho.

– Senhora, a sua gravidez tinha somente três meses. A maior parte dos abortos espontâneos ocorrem nesse período. O aborto é indicativo que tinha algum problema. Se não fosse agora, seria em outro momento.

— Era o meu filho. Disse com o rosto contorcido, deformado pela dor e pelo choro.

— Não era nada, ainda, senhora. Vai ter outro. Disse a médica sem levantar a cabeça da mesa, ou lhe dirigir um olhar.

A médica não sabia. Fátima sentia que aquela era sua última chance. O marido nunca mais voltou pra casa. E ela tinha perdido a vontade de conhecer qualquer pessoa. Tinha perdido a vontade sequer de engravidar. E agora estava ali, comendo um misto frio e bebendo um suco quente. Não percebeu quando seu pedido chegou. Já tinha passado tanto tempo que a lanchonete começava a ficar abandonada. Do lado de fora, o mesmo sentinela na noite dos tempos, com seus cabelos esvoaçantes, imponente sobre as pessoas andando aos seus pés, fincados talvez por vários quilômetros debaixo da terra. Seus dedos deveriam sentir as igrejas ao redor da praça, e os carros da rua, e até mesmo os pensamento de Fátima dentro do supermercado, na lanchonete. Ele seria capaz de ouvir seus pensamentos. Mas até mesmo ele seria indiferente a sua dor. A dor de uma mulher sozinha que perdeu o filho do presente, como todos os filhos do futuro, não era diferente do choro de uma infinidade de mães que ele deveria ter ouvido pelos anos. Ele deveria ser igual a médica, indiferente a dor dos seres humanos de tanto os presenciar sofrer. Ela mesma deveria ser insensível a própria dor, já que ser sozinha não era algo novo pra ela. Mas perder um filho era, um filho que ainda nem era seu.

Nesses momentos ela percebia como era possível perder algo que nunca te pertenceu. Provavelmente nunca pertenceria. Ela sabia que não podia se possuir outro ser humano. Ela entendia, mas seu coração ignorava. Em seus sentimentos, ainda era um pedaço seu. Haveria um cordão que não seria quebrado. Quando ele crescesse, e fosse embora, e constituísse família, e não a viesse mais ver, e ela chorasse de saudade, haveria satisfação de que havia um filho no mundo, que era dela, que ela pariu, e isso lhe dava um direito qualquer perpétuo, que lhe teria sido concedido por carrega-lo na barriga e por o ter alimentado com o próprio leite. Nenhum desses contratos chegou a ser firmado. Tudo era uma dor pelo o que não pode ser vivido, por um homem que já tinha um nome, e que agora que estava morto, e não tinha mais compromisso nenhum com o mundo, em sua cabeça chamava-se Shaka. Não importava que fosse um monstro, ou que tivesse nome de um verme.

As poucas pessoas presentes não demorariam a ir embora. Os atendentes, agora restritos a um caixa e mais um empregado, trocavam algumas palavras. Eles deveriam se perguntar se a mulher estranha e chorosa ficaria ali a noite toda. Talvez até desejassem que ela fosse embora. Guardariam não sabia que panelas mais cedo, que produtos vencidos jogariam fora, ou guardariam para servir no dia seguinte.

Nandi e os Filhos de Hórus (Em Revisão)Where stories live. Discover now