Capítulo 10 - Parte 03

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Os homens perdidos naquela clareira, entre barracas e tecidos, não podiam perceber. Eles nem desconfiavam. Não percebiam que a presença de dois monstros que se margeavam. Os indígenas mais experientes já saberiam que havia algo de errado. Eles perceberiam na música da noite, que a floresta se remexia, inquieta com o cheiro de sangue que se esgueirava.

No momento em que a irmã emergiu da mata, Laura teve um choque. Não se pode imaginar que conversavam, como descrevemos a seguir. Nenhuma das duas conhecia a língua moderna que conhecemos hoje como português. A língua que falavam beirava algo entre o tupi e qualquer outra corrente linguística dos nativos da época.

Mesmo assim, seus sentidos aguçados, podiam desenhar um diálogo muito próximo do que vamos supor.

— Quem é você? O que faz aqui? — Demonstrou Laura. Percebia que seria incapaz de subjuga-la com a força. Sua visita era muito forte. Ela podia ver e podia sentir.

— O mesmo que você? O que mais seria possível? Existem algumas pessoas mais a frente. Podemos dividir.

— Nós não dividimos nada com ninguém. Quem você é? Você é muito jovem. Quem foi a anciã que a fez? Ela não te falou nada? Você é negra!

— E você é índia! Qual é o problema?

— Eu não sou índia!

— Claro que é! Você não se enxerga? Nunca viu a própria imagem?

Laura ficou pensativa.

— Responda! Me diga! Cadê sua anciã?

— Não sei! Ela foi embora! Depois de algum tempo, simplesmente sumiu. Não tenho ideia de lugar para onde ela foi.

— Também não sei o paradeiro de nenhuma delas.

— Vamos dividir as presas. Não preciso de todas. Eu quero somente um dos homens.

— Você vai me deixar ficar com as três mulheres e mais um homem? Tem certeza?

— Tenho. Mas eu quero o mais jovem.

— Que seja!

Num momento os dois homens e as três mulheres se organizavam ao redor de uma fogueira que se extinguia. O som da noite seguia um curso estranho e despercebido para os cinco. E então, do nada, a morte se abateu sobre o homem mais jovem. E todos acordaram assustados e a outra emissária abateu esta mulher que estava acompanhando o homem que foi levado. Todos se levantaram assustados, e cheios de desesperos. Os gritos se perdiam na escuridão da noite, os gritos inconfundíveis da morte desesperada e horrenda. O homem procurou no meio das coisas, procurava uma marma, que devia estar perdida. Quando não precisasse dela, ele a teria encontrado sem problemas. Mas naquele momento, aliado ao nervosismo nada parecia dar certo.

As outras duas mulheres procuraram qualquer pedaço imundo de lona. Uma irmã consolava a que estava sempre enjoada. As duas se esconderam tremendo e chorando, enquanto o outro homem buscava a última defesa.

A morte se abateu sobre este homem, tão repentina, que as mulheres podiam ouvir um estrondo grande quebrar-lhes os ossos, antes que o horror morresse em sua garganta. E então, a morte se abateu sobre elas, sem cerimônia, sem qualquer explicação. E num instante estavam aterrorizadas, e no instante logo seguinte, mortas.

As duas se serviram com voracidade. Queriam sorver o sangue enquanto ele estava quente. Assim que terminou, a mulher que viria a ser Nandi, a jovem vampira negra, foi remexer as coisas de viajantes. Ela cavou os toneis de feijão e milho. Encontrou todas as pepitas ocultas. Depois revirou as roupas. Encontrou algo que podia ser útil. Jogou a roupa que usava fora. Revelou o corpo duro e musculoso, as coxas grossas, as curvas acentuadas. Revelou sem pudor e sem elegância. Recolheu a roupa que mais se aproximava do seu porte, e vestiu-se com visível satisfação.

— O que vc está fazendo? Você é vulgar! Servindo-se das roupas destas criaturas inferiores.

— Não entendo! Você está praticamente nua. Com estes restos que deveriam a muito tempo ser penas de aves, e peles de animais. Não sei se você percebeu, mas não sobrou nada de dignidade nas vestes que está usando. Se você pegar uma das roupas que estão aqui, você poderá pelo menos se passar por uma mulher comum quando passar por povoados de homens. Pode ser útil. Nem sempre é necessário fugir. Você será incapaz de passar despercebida. É impossível que algum homem não queira violentá-la. E se o quiserem, que diferença faz pra você. Se não estiver com fome, deixa que se satisfaçam e irem embora. Até mesmo porque nenhum deles será capaz de ferir você. Com a força que possui, tenho certeza que será capaz de decretar-lhes o pênis. Evite somente mortes muito estranhas. Podem chamar a atenção pra você. A menos que, de todas as habilidades que possui, lhe falte a básica de mentir.

— Como você vai passar por povoados de homens, se você parece uma escrava?

— Não existem somente povoados de homens brancos. As aldeias de homens índios e aldeias de escravos fugidos me recebem bem. Os escravos melhor que os índios. Os últimos parecem ter uma ideia vaga de quem eu sou. E para os escravos, é como se eu fosse uma bruxa. Mas o ouro que eu levo, e os utensílios que eu pego, são muito úteis. Consigo comprar minha permanência em suas casas. E como evito matar em seu território, eles não desconfiam de mim.

— Não entendo por que devo me rebaixar e selar pactos com vermes. Eu pego o que eu quero. Tomo o que tenho vontade, até me sentir satisfeita.

— Os tempos mudaram. Estão mudando. E continuarão a mudar. Se continuar desse jeito, em breve sua sede não terá fim. Aprenda as lições que o sangue te traz todos os dias. Minha anciã avisou sobre a sua geração. São incapazes de seguir o caminho do sangue. Pra vocês, não passa de alimento. Mas o sangue é sagrado.

— Besteira. Não existem deuses sobre a terra além de nós. Somos os únicos deuses que existem. Se você não tem noção da sua dignidade. Em breve as próprias irmãs sorverão seu sangue. Não me diga besteiras. Não vou mudar minha forma de agir.

— E quanto aos devoradores?

— Você os sente?

— Qualquer uma de nós os senti.

— Você percebe que existe dois em nosso encalço?

— Sei exatamente onde estão. Você sabe também, que eles vão nos encontrar. Enquanto você agir dessa forma, vai somente aumentar o rastro que deixar pra eles seguirem.

— Eles são incapazes de seguir um rastro de forma decente.

— Não é assim que eles se comportam. Acredito que você já percebeu. Eles são capazes de ver. Eles reúnem informações. E são capazes de ver onde podem nos encontrar. Sei onde estão. Eu gostaria de fazer uma proposta pra você.

— Quem disse que estou interessada?

— Deveria. Eles estão no teu rastro. Não no meu.

— Então porque vc está interessada em me ajudar?

— Quanto menos devoradores, pra mim melhor. E você faz muito barulho. Eles vão apanhá-la rápido. E em seguida, virão atrás de mim.

— Não sei se tenho interesse.

— Eu tinha vontade de ir pessoalmente atrás destes monstros. Mas não tenho força suficiente. Eu preciso de sua ajuda.

— Quem teria coragem de enfrentar esses monstros?

— Eu não tenho chance alguma. Mas com você, a grande representante da geração de deusas que reinaram no passado, tenho certeza que seremos vitoriosas. Eu imploro sua ajuda. É minha última chance.

— Nunca vi isso acontecer, duas irmãs se unirem. Vou ser generosa com você porque é jovem. Mas não me incomode novamente com esses assuntos.


Nandi e os Filhos de Hórus (Em Revisão)Where stories live. Discover now