Capítulo 03 - Parte 05 - Roza e Cruz

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O carro avançava lentamente. Como tinham saído com antecedência, o trajeto estava dentro do planejado. Chegariam com tempo suficiente. O motorista conhecia seus passageiro e sabia que não gostavam de conversar. Quando ele olhava pelo retrovisor, reinava um silêncio absoluto.

Na verdade Atlas e Heitor pronunciavam as palavras em um tom tão baixo, que apenas os dois podiam escutar, e a uma velocidade impressionante. Talvez um cão pudesse entender o que falavam, mas não um humano.

— A cada década que passa, a caça está ficando mais difícil. — Dizia Heitor.

— É porque nós estamos reduzindo de número. Tanto nós quanto os vampiros, com a diferença de que o suprimento de sangue deles parece ilimitado.

— Qual será o nosso destino?

— Nós não acreditamos em destino, mas se você pergunta qual seria a consequência lógica, qual o resultado que se desenha a nossa frente, seremos extintos como os anciãos, como os dentes de sabre, como os dinossauros. Seres espantosos, magníficos, e inadequados. Um dia, quando no futuro alienígenas ou qualquer outra espécie derivada do lixo humano tiver tecnologia suficiente para identificar nossos fósseis, poderão dizer que fomos extintos por uma mudança climática, e pela destruição de nosso habitat e de nossa fonte de alimento.

— Alguma notícia da assembleia dos Filhos de Hórus?

— Você sabe que a assembleia é inútil. Eles estão tão perdidos quanto nós. A maior parte está tão ocupada em caçar o próprio sustento, que poucos possuem tempo para a pesquisa necessária. Mesmo os mais exímios caçadores, não estão dispostos a dividirem seu alimento com escribas. Não importa quanto dinheiro despejemos na assembleia, dinheiro vindo do mundo inteiro, usando as formas de transações criadas pelos humanos, e nas quais nos instalamos como parasitas sugando seus recursos. Nada é o bastante, e não há perspectiva para encontrar qualquer substitutivo para o sangue dos vampiros, este sangue raro e depurado, através do consumo de milhares de vidas por centenas de anos.

— Não houve resultado sequer da pesquisa realizada pelos humanos?

— Eles não sabem o que procurar. Podemos dizer pra eles elaborarem um sangue sintético. Mas o sangue que procuramos não é o mesmo do humano.

— E quanto as tentativas de negociação com os próprios vampiros.

— Não temos argumentos suficientes para convencer os vampiros a nos ajudarem espontaneamente. Eles também estão sumindo, e é lamentável se os seus mais ferozes predadores irão sumir também. Não fosse suficiente, a própria qualidade dos espécimes está deteriorando. Se antes uma presa poderia manter-nos saciados por décadas, em poucos anos somos obrigados a caçar novamente. E você também sabe como funcionam aqueles selvagens. Imaginar qualquer tipo de colaboração seria impossível. Não há qualquer projeto em andamento que vise apagar milênios de matança. Mesmo se iniciássemos qualquer tratativa agora, não haveria tempo. Morreremos de fome antes.

— Isso quer dizer que a única coisa que podemos fazer é caçar até o último espécime acabar, e depois disso, sentarmos no interior de nossos castelos aguardando até virarmos pedra.

— Nossa última alternativa seria hibernar, iguais aos antigos. Podemos permanecer assim por algumas centenas de anos, ou mais, até que o mundo mude, e algum substitutivo apareça, ou como sangue, ou como raça. Alguns membros de nossa espécie já estão se antecipando. As atuais clínicas de criogenia são capazes de induzir o processo de forma segura. Podemos contar também com as atuais estruturas jurídicas, fundações e arranjos de planejamento sucessório e contratuais de corporações para garantir nossa preservação. Há sempre um risco, que buscamos mitigar. A sociedade humana corre constante risco de ruir, e as convulsões sociais põem em risco nossos projetos. De repente, de um dia pro outro, nossa riqueza pode virar pó, e ficarmos enterrados e esquecidos debaixo de toneladas de escombros. Embora não exista nenhuma novidade no que falei, e os seres humanos amarem estar à beira da extinção, essa raça miserável parece fazer um trabalho efetivo, embora esteja longe de bom. São capazes de devorarem a si próprios para se manterem vivos.

— Nós vamos acompanha-los, Atlas?

— Já começamos nossos preparativos. Talvez mais dez anos, e acredito que será seguro iniciarmos o processo.

— Não me refiro a isso, meu amado. Pergunto se vamos nos devorar uns aos outros, se você me devoraria caso não restasse mais ninguém.

— Nunca. Essa ideia está fora de cogitação.

— Eu tenho medo!

— Você sempre foi medroso.

— Você não sente nada? Deixamos de existir, e pronto.

— Espécies deixam de existir todos os dias, Heitor. O que te faria pensar que somos diferentes? Vimos isso acontecer com populações inteiras. O planeta é cruel conosco, e possuímos uma infeliz adaptação, que os antigos não foram capazes de nos explicar antes de sumirem. Nosso alimento também está sumindo. O fato de sermos inteligentes, e dominarmos o mundo atual, não será capaz de nos salvar. No final, somos apenas uma espécie que se alimenta de outra. E fazemos tudo para sobrevivermos. Temos a peculiaridade de não nos reproduzirmos, de não termos filhos, não engravidarmos. Conforme a história dos escribas, parece que brotamos do chão como o trigo, mas no nosso caso, as sementes se perderam. E convenhamos: ninguém está preocupado com a perpetuação da espécie. Estamos somente interessados na nossa própria subsistência. Os antigos talvez estivessem, mas nós não.

— Você não me deixou mais tranquilo.

— E o que você preferiria?

— Somente que você diga que estará comigo.

— Eu estarei lá.

— Assim está melhor. Eu não sei o que faria sem você.

— Você morreria de fome.

— Eu já teria morrido a muito tempo. Mas as vezes acho que você não me ama.

— Você não acha que já estamos velhos para este tipo de jogo? Trezentos anos não foi suficiente pra você?

— Nós sabemos que não envelhecemos dessa maneira. Antes, não envelhecemos. Ficamos somente doentes, a doença dos filhos de Hórus, que é terrível.

— Não vamos precisar nos preocupar com ela.

Atlas permanecia de olhos fechados o tempo todo, como envolto em uma oração. Heitor olhava para fora. O trânsito tinha melhorado um pouco, e logo chegariam.

— Alguma percepção sobre esta devoradora?

— Os casos são inconsistentes. As informações não estão batendo.

— Também achei.

— Mas vamos verificar somente. Podemos ter sorte. Existe uma margem devido a imprecisão e ao comportamento incerto de nossas presas. Quando chegarmos em Pernambuco, vamos verificar os locais em que os corpos foram encontrados, e traçar uma trajetória. É óbvio que a devoradora não está mais naquele local. Deve ter viajado para outro. Eles não param em lugar algum. Não podem. Depois de identificarmos seus rastros, caso sejam verdadeiros, iniciamos a perseguição de forma implacável. Depois voltamos para Pernambuco, se der tempo de pegar o avião para Colômbia.

— E aquele caso? Aquela cidade?

— Ananindeua?

— Sim.

— É mais incoerente, ainda. Um homem idoso, cidade remota. Pelas fotos, todo o sangue do homem estava no chão. Não havia sinais de o terem sugado. Mesmo assim, os ferimentos são estranhos o suficientes para desconfiar. Ainda por cima, uma criança sumida. Não haveria motivos para matar o velho e ocultar a criança. Ela deveria ter sido morta no mesmo local. Não foi. Estes selvagens não fazem reféns. Nós não fazemos. Por isso deixamos esse caso por último. Não fosse por um caso semelhante na mesma cidade, não teria chamado minha atenção. Em outros momentos, eu não ligaria para o caso desta cidade. Mas agora, devido ao nosso desespero, vamos averiguar também.

— Os tempos mudaram, não foi Atlas, meu amado?

— Os tempos sempre mudam. Somente a lógica continua a mesma.

Nandi e os Filhos de Hórus (Em Revisão)Where stories live. Discover now