Capítulo 04 - Caminhos de Sangue - Parte 04

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Fazia tempo que ela ouvia aquela nova língua. Devia ter aprendido algumas palavras. Nesta nova época, sem a proteção que a divindade conferia, um mundo repleto de caçadores, a linguagem seria uma aliada importante. Pelo o que entendeu daquela imensidade de diálogos, havia sempre o eterno problema de amor proibido. Dois jovens no auge do vigor físico, queriam unir-se. Eles formariam uma bela família e teriam filhos magníficos. Os mestiços são os melhores. São mais fortes e mais belos. Sonhou com a possibilidade de restabelecer o seu culto talvez com aqueles dois. Mas o mundo era outro, e quando os eventos perdem seu tempo e lugar, eles não podem mais se repetir. Outros cultos deviam existir agora. E acima de tudo, ela tinha fome, muita fome.

Viu a jovem sair primeiro, sorrateiramente e afastar-se da casa. Viu também o jovem segui-la, e contemplou os beijos e os abraços. As mãos no corpo um do outro. Ela tinha fome. Daquela forma era mais fácil. Avançou para a casa mais pobre e entrou no quarto do casal. Lá avançou sobre a mulher e o marido. Devorou primeiro ela, de forma rápida e ruidosa. O homem avançou sobre ela. Ele era forte, mas era como agarrar um bebê. Sua força era insuficiente. Dilacerou seu pescoço com os dentes. Logo em seguida foi atrás da menina, no outro quarto. Ela estava sobre a cama, debaixo das cobertas, com medo do barulho. Era um filhote indefeso. Não teve dificuldades para arrancar o lençol, agarrar a criança como um brinquedo, e dilacerar seu pescoço frágil, que quebrou com a força das mordidas. Viu a criança gritar com toda a força dos pulmões, o grito estridente, depois de chamar pelo pai e pela mãe, ambos já mortos, até que com o estalado do pescoço, silenciou após engasgar com o próprio sangue. A vida escorreu rápido em seus braços.

Depois atravessou o espaço que separava as duas construções e entrou na casa maior. Foi direto para o quarto do marido. Ele tinha já certa idade, mas seu sangue estava cheio de vigor, com a sensação de poder. Eles já estavam assustados. Podia sentir o medo em seus olhos. Ele estava com os olhos muito arregalados, e não foi capaz de distinguir a sombra que entrou pela porta que não estava trancada, e voou sobre ele na cama. Pousou na cama fofa com os dois pés. Quando o pegou, uma das mãos em um ombro, a outra no antebraço, sento alguns ossos quebrarem. Ao mesmo tempo dilacerou seu pescoço exposto, ouvindo seu grito furioso e grave. Não havia o que fazer, além de gritar, mesmo que furiosamente. Metade do sangue caiu sobre a cama, a outra parte ela sorveu tão rápido que fez sua cabeça girar.

Encontrou a mãe agarrada com os filhos no outro quarto. Retirou primeiro uma criança de seus braços e a devorou, depois pegou a outra. Tudo diante dos seus olhos. Em seguida a tomou, sorveu ruidosamente seu sangue de seu pescoço delicado. Agarrou sua cabeça com tanta força que quebrou-lhe a mandíbula. Inebriada, arremessou o corpo da mulher para outro lado do quarto. Ela caiu retorcida, uma posição angustiante.

Então foi para fora. E contemplou as estrelas. Viu o casal de jovens se separar. Viu o rapaz ir para uma casa e a jovem ir para a outra. Viu também os dois saírem juntos, vagarem pelos fundos da casa e planejarem algo. O homem forte guiando seu amor frágil. O sangue correndo na vampira fez seu pensamento ficar menos turvo. A memória de sua anciã veio a sua mente. Ela foi a primeira a ir embora. Ela sabia o que estava chegando, e foi incapaz de avisar suas irmãs. Ouviu o nome que o homem pronunciava. Tinha certeza: esse era o nome da fêmea: Laura.

No momento em que os dois namorados se preparavam para ir a caminhonete e tentar fugir, a vampira saiu da escuridão e apareceu para eles. Os olhos do rapaz pareciam não acreditar. Uma mulher, embora usasse andrajos, estivesse suja, os cabelos desarrumados, podia-se perceber em seu estado selvagem que era uma mulher bela. O corpo robusto, as pernas e os braços fortes. A vampira sentia-se podre por dentro, dilacerada, mas nada disso chegava ao seu exterior. Por fora, mesmo que coberta de lama, ainda era uma deusa aos olhos dos humanos. Mas não era lama que a cobria. Mesmo humanos eram capazes de sentir o seu cheiro de sangue.

— Corra! — Laura disse à mulher. — Fuja! Existe um monstro por aqui. Vamos todos morrer.

— Pare, Laura! Você não entendeu? Ela é o monstro.

Então a vampira sorriu, o sorriso medonho da morte, mais aterrorizante devido a sua beleza selvagem, que mesmo a sujeira e o sangue eram incapazes de ocultar.

— Você não vai fugir? Falou com a voz mecânica. Não estava ainda familiarizada com a língua. Não tinha adquirido a entonação correta.

— Fugir? Você matou nossos pais. Não vou abandonar Laura aqui. Se vamos morrer, vamos morrer juntos. Mas espero que você pague pelo o que fez aqui.

— Eu já paguei. — Falou novamente com a voz mecânica, a língua desengonçada com as palavras.

— Por favor, deixe-nos. Nós não vamos contar para ninguém. Nós juramos.

A vampira olhou pra eles contemplando sua beleza. Eram lindos. Não entendia muito bem suas palavras, mas percebia que tentavam negociar. Negociar com um Deus? Deuses negociam por capricho. E ela continuava faminta.

— Vocês são lindos. Eu quero vocês. Marcos! Laura!

O próximo movimento foi rápido, ela avançou sobre o jovem. Sem motivos especiais para lhe dar prioridade. Em outros momentos, gostaria de brincar com ele, e lhe conferir uma morte doce. Esse tempo, no entanto, se foi. Agora era apenas sua fome naquele mundo novo. Ela não via uma irmã há muito tempo, e sabia que sua espécie estava sumindo.

Subiu sobre o rapaz, como quem escala uma encosta. Um dos pés sobre o quadril, o outro galgando o peito. Seu equilíbrio era tênue. Agarrou Marcos pelos cabelos, a outra mão no braço, e o estendeu em um movimento simples, para expor bem o pescoço. Os tendões e os músculos ficaram evidentes, e ela os destroçou com os dentes. Laura permaneceu ao lado, gritando, demorando a ter qualquer reação. Quando a vampira estava terminando, decidiu-se por se levantar e tentou correr. Sua perna vacilou o e o joelho tocou o chão. Não teve tempo de se levantar. A vampira agarrou seus cabelos por trás e a ergueu usando uma das mãos, as pernas dando coices desesperados. Em um momento havia uma fritaria infernal. O corpo de Marcos estava logo atrás dela. Laura morreu sem ter oportunidade de ver seu namorado mais uma última vez. Os gritos silenciaram, após o barulho de carne rasgada.

Os animais tinham fugido. Nem mesmo o cheiro do sangue era capaz de atraí-los naquele momento. Eles tinham a percepção, o cheiro, do monstro que estava ali. A vampira entrou na casa maior, entrou no quarto do casa e tomou um banho demorado. Lavou o sangue e a lama. Ao terminar, foi até o quarto de Laura. Lá remexeu para verificar as roupas. A jovem era quase do seu tamanho, e não teve dificuldade para meter-se numca calca jeans, e escolher uma blusa decotada, que deixasse a mostra o volume dos seus seios. Diante do espelho, repetiu várias vezes: Laura! Laura! Um novo nome era o que precisava para entrar naquele novo mundo, embora sua vida ainda fosse velha.

Tinha decidido parar de viver a margem dos homens. Antes preferia aventurar-se naquela selva iluminada. Mais alguns quilômetros, e atravessaria seus becos, mergulharia em seus prédios, suas próprias versões de cavernas abandonadas, onde poderia se recolher, até que a noite devolvesse novamente a oportunidade de caçar, e saciar sua sede sem fim.

Nandi e os Filhos de Hórus (Em Revisão)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora