Capítulo 8 - O gigante da noite - parte 2

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— Senhora? Já escolheu seu pedido?

— Desculpe! Olhou o mostrador. Ficou indecisa. Perguntou se tinha alguma cardápio. A atendente apontou para um cartaz pregado. Era simples, mas servia. Deviam pensar que ela era uma idiota. Não suportava uma atendente, talvez sem terminar o ensino médio, se achar superior a ela.

— Um misto, por favor, e um suco de maracujá com leite. Recebeu um papel com alguns números. Abriu a bolsa e lamentou não ter tudo a mão. Queria que aquele momento demorasse o menor tempo possível. Atrapalhou-se um pouco e percebeu que uma adolescente suspirava por causa da demora. Pensou em mandar a moleca para o inferno, mas se conteve. Pagou para que a mulher perguntasse o seu nome.

— Fátima. E anotou no papel que era seu controle.

— É só aguardar, Senhora. Vamos levar o seu pedido. E se despediu com aquele sorriso insuportável no rosto.

Na mesa voltou a contemplar a árvore dançante. Lá fora havia outra praça, com escolas e igrejas ajoelhadas aos seus pés. A praça era centro daquele reboliço de vida. Mas a noite, possuía aquele abandono suave. Algumas pessoas andavam aqui e ali, espalhando-se entre as lanchonetes, ou simplesmente andando. A árvore era como um ancião que senta à porta de casa e observa o movimento. Mas após observar alguns instantes, e perceber como aquele gigante era frondoso, convenceu-se estar diante de um guardião centenário. Aquele século deveria ser apenas o tempo necessário para se tornar adulto. Imaginou então um homem moreno, enorme, de braços cruzados e sem camisa. A suavidade do vento balançava seus cabelos longos, o tipo de homem que talvez gostaria de ter em casa para passar uma noite. Um homem silencioso, que não lhe fizesse muitas perguntas.

Ficou de costas para o supermercado, com e esperança de que ninguém a notasse. Vez ou outra arrumava os óculos com aros grossos. Era moda usar óculos daquela forma. Óculos imensos que lhe faziam parecer uma abelha. Deveria ser uma abelha negra africana. Mas isso significava que ela deveria ser perigosa, e que nunca estava sozinha. A única semelhança era ser estéril.

Para os conhecidos, dizia que sempre quis ter um marido negro. Fazia parte de sua formação, como professora e mulher que sempre foi engajada no movimento negro. Depois de séculos de escravidão, os negros deveriam reerguer-se, cursar faculdades, serem felizes, e ocupar o seu espaço na sociedade. No entanto, vez após outra, seus homens sempre foram brancos.

Seu último relacionamento fora um descendente de portugueses corretor imobiliário. Era um vagabundo. Passava o dia lendo a bíblia, e sabia o sermão da montanha decorado. Recitava os trechos que conhecia como quem recita um poema, usando aquela voz solene que não se usa pra nada na vida. Ele ficava lá jogado em sua casa, esperando por ela chegar da faculdade em que dava aula.

Quando descobriu que estava grávida, imaginou que aquele homem tinha valido a pena. Correu para comprar um berço, ligou para as pessoas que eram o mais próximo de amigas que conhecia, e postou no face, para que todos soubessem a sua felicidade. Passou dias sonhando, imaginando seu filho mestiço, com o cabelo cacheado, o rosto ameno, indeciso entre a mãe e o pai. Não esperava que aquele homem permanecesse ao seu lado. Antes, gostaria que ele fosse embora, e que a deixasse sozinha com seu filho. Imaginou que ele apareceria de vez em quando, uma vez por mês, para fazer coisas de homem, ir assistir um jogo, andar de bicicleta, jogar bola. Tinha perdido o interesse pelo marido muito antes. Agora que ele tinha lhe dado o que queria, deixara de se importar.

Ela escolheria um nome Africano. Por anos imaginou se poderia mudar o próprio nome, para algum que lhe lembrasse sua tribo, sua etnia original, a casa dos antepassados. Por isso, gastou um pouco de tempo pesquisando nomes de origem africana. Pesquisou nomes iorubas e bantus. Foi dessa forma que conheceu Nandi.

No final do ano começava a época de chuva. Após alguns meses de muito calor, era um alívio, assim com gerava certo incômodo, os temporais de final do ano. Os temporais do final do ano significavam que os sapatos estariam sempre cheios de lama, significava resfriar-se com facilidade, por estar com a roupa sempre molhada, que os lençóis teriam mais dificuldade para enxugar, e também eram dias ruins para uma criança nascer.

O ambiente ficava melancólico quando chovia na universidade. Na frente da biblioteca da calha descia uma corrente para um escoadouro que fazia a drenagem. Era uma caixa de concreto. Nas noites quentes, os alunos faziam dele um banco, e sentavam ali para jogar conversa fora. Naqueles dias de chuva, a calha se transformava numa cascata, e ninguém se arriscava a se molhar. O barulho podia ser ouvido de dentro da biblioteca. Seria um incômodo, não fosse relaxante. Um especialista talvez fizesse diferente, e optasse por instalar uma cascata no meio da sala de leitura. Mas aquela era uma universidade federal. Os prédios, como caixas rústicas, não tinham tais ambições. Eles podiam passar tranquilamente por galpões, onde se deposita areia ou seixo.

Fátima folheava um livro qualquer, procurando ideias para nomes. Numa sala reservada para grupos, separada da grande sala de leitura. Entre meias divisórias, com a parte superior em vidro, no interior, uma mesa redonda, ela folheava um livro quando se deparou com a história de Shaka Zulu. Não era um personagem novo. Ela o conhecia. Ele tinha sido um monstro, um general que dizimou milhares. Fundou o grande Império Zulu, até que o povo fora aniquilado pelos ingleses. O que ela não tinha imaginado, era que Shaka Zulu tinha uma mãe.

Nandi e os Filhos de Hórus (Em Revisão)Where stories live. Discover now