Capítulo 08 - O gigante da noite - parte 06

34 10 25
                                    

Não se passou muito tempo, e a mulher foi embora. Como desviava o olhar, Fátima não percebeu direito aonde ela foi. O supermercado estava fechando, e as mesas estavam desertas. Apenas Fátima e os outros dois permaneciam no local reservado a lanchonete. Quando ela se voltou para ver seu filho, a menina pegava lenços de papel e limpava a boca do rapaz. Ele era muito desajeitado, e comia com a mão. Seu rosto estava todo sujo, assim como os dedos, com restos de pizza. Aquela alegria engordurada permanecia sorrindo, e batendo palmas ruidosas. Isso dava um pouco de trabalho para sua acompanhante. Mas a menina era cuidadosa e paciente. Quando ele retirava uma mão, ela a tomava novamente. Passava o lenço nos dedos, ora na palma das mãos, e afastada um vestígio ou outro da camisa. Fez o melhor que pode, e apressou-se para sair no momento em que o jovem começava a ficar impaciente.

Eles seguiram por entre as prateleiras com objetos de higiene pessoal. Eles logo sumiriam da sua vista. Depois daquele momento, talvez nunca mais pudesse ver seu filho novamente. Não adiantaria ela voltar aquele supermercado dia após dia, no mesmo horário, com a esperança de vê-lo novamente. A oportunidade era aquela. Ela precisava de qualquer informação, qualquer coisa, a placa de um carro, um endereço, um nome para seguir, para rastrear. Ela levantou e os seguiu.

Ela iria observar. Talvez em algum momento, a menina se distraísse e pudesse roubar o rapaz. Ela poderia tentar enganar a menina, mas aqueles olhos de serpente, aquele jeito sinuoso, a intimidade com aquela mulher lasciva, demonstrava que não seria simples ganhar a confiança dela.

Fátima os acompanhou a certa distância até a entrada do supermercado. Lá havia uma passarela que guiava para o estacionamento no subsolo. No entanto, quando eles chegaram ao início da passarela, passaram direto, e desceram as escadarias de acesso para a rua. Achou estranho. Esperava que a mulher estivesse lá, no carro, esperando por elas. Ao contrário, eles desceram as escadarias e dobraram calçada, ao lado da rua.

Fátima olhou ao redor. Ninguém reparava nela. As últimas pessoas estavam saindo. A maior parte delas descia para o estacionamento. Perto da entrada, apenas algumas pessoas esperavam, em pequenas aglomerações. Eram jovens, ou mulheres, a maior parte esperando que alguém viesse pegá-los de carro, parando na frente somente o suficiente para entrarem e seguirem caminho. Ela os acompanhou. Eles passaram por um calçada com a rua repleta por uma fila de táxis esperando passageiros. Alguns motoristas ficavam sentados em bancos improvisados, conversando. Eles ignoraram os dois, mas alguns mexeram com ela.

— Ei, morena gostosa!

— Pernas bonitas!

— Eu te levo pra casa!

Ouviu alguns dizerem. Alguns até levantavam, para pegar no pênis enquanto ela passava. Eram homens carecas, na maior parte, barrigudos, com camisas rotas de botão.

— Vão se foder, bando de filhas da puta.

Eles caíram na gargalhada. Não entendia que satisfação encontravam naquilo. Ela os ignorou e continuou acompanhando os outros dois. O seu carro tinha ficado no estacionamento, e teria que voltar pelo mesmo caminho, e teria que enfrentar um outra vez aquele corredor abjeto.

Seu filho e sua raptora já atravessavam a rua. O supermercado ocupava aquela lateral do quarteirão. Do outro lado, havia um muro alto sobre uma calçada suja. O concreto estava manchado aqui e ali, dando sinais de que algum monturo de lixo fora recolhido. A visão daquele muro erguendo-se da calçada, era a visão de um mundo desconfortável, ditado por ângulos retos. Era assim na sua casa, nas suas salas de aula e nas ruas.

Ela se afastou do cruzamento. Não estavam muito distantes. Caso olhassem naquele momento para trás, não a veriam. Seguiu um pouco pela rua que passava naquele cruzamento, e a atravessou um pouco afastada. Não muito. Tinha medo de perdê-los. O quarteirão, porém era longo, e qualquer mudança de rumo, ela não demoraria para notar a direção. Era uma escola antiga, aquele com nome de Freira, geralmente com uma ex-freira na direção, para comandar um exército de professores com o chicote na mão.

Fátima se aproximou cuidadosamente do muro, e avançou para ver os dois. Eles deviam caminhar por uma rua deserta. O carro só poderia estar por ali estacionado, esperando por eles. Mesmo assim, era perigoso. Duas pessoas indefesas, e mais uma mulher, poderiam ser atacados a qualquer momento. Ela mesma poderia ser vítima de um ataque. No seu caso, no entanto, não fazia a menor diferença. Diante desse pensamento, acelerou o passo, com medo por eles.

Quando chegou ao cruzamento, deu de cara com a mesma mulher negra que sentara a mesa com seu filho, a mesma mulher que compartilhava com a menina uma cumplicidade inadequada. Ela olhava Fátima tranquilamente, que por sua vez, sem explicação aparente, começou a tremer. De súbito ficou frio, e não conseguia conter os dentes batendo. Olhando por cima do ombro da mulher, não conseguia mais vez os outros dois. Eles sumiram. Imaginava que tinham entrado em algum carro. De onde a mulher tinha saído, porém, era um mistério.

— O que você quer? Perguntou calmamente, um sorriso gentil e enganoso no rosto. Fátima não acreditava que houve qualquer intenção amena em seus pensamentos. Ela continuava tremendo. Não como se pega em flagrante. Era um terror diferente. Sentia-se diante de um monstro, diante de um assassino. Embora fosse apenas uma mulher provocante, com o olhar e os movimentos maliciosos. Esse tipo gente, geralmente é perigosa. É o tipo de gente que mata envenenado, que apunhala pelas costas. Mas aquela mulher era diferente. A qualquer momento, sentia Fátima, ela seria capaz de arrancar a sua cabeça.

— Shaka?

— Quem? Araragi? Esse era o nome dele. Que estranho! Nunca imaginaria um nome assim. — Engraçado a senhora me dizer esse nome. Faz muitos anos que eu não escuto.

— Ele é lindo.

— Ele é puro, alma e sangue. Ele é um tesouro.

— Eu quero vê-lo.

— Por que?

— Ele me lembra meu filho.

— Seu filho morreu?

— Sim.

Nem nasceu.

Eles surgiram de algum lugar. Agora ele estava silencioso, o sorriso eterno no rosto. Ele abraçou Fátima sem que lhe pedissem. Ele não a fitava diretamente. Escondia o olhar de vergonha. Isso realçava ainda mais a sua beleza. Nunca conhecera uma pele tão macia. Um príncipe egípcio talvez fosse banhado em leite. Mas ele tinha aquela pele, que a natureza lhe conferira, e aquela sensação parecia não a querer abandonar mais. Quando ele a soltou, e a menina o levou embora, Fátima já estava chorando, sem ruídos, sem barulho. Somente as lágrimas, e um pouco do sorriso do rapaz tinha permanecido com ela.

Nandi e os Filhos de Hórus (Em Revisão)Where stories live. Discover now