Capítulo 06 - O correspondente - parte 01

65 15 91
                                    

A cidade era um caldeirão, mesmo assim tinha que sair de terno. Os juízes da cidade ainda exigiam o uso de paletó e gravata, e não podia se dar ao luxo de ser expulso da sala de audiência. Deu o nó na gravata com o suor escorrendo pela testa. Enxugou com um lenço e ganhou a rua.

Por sorte tinha conseguido um quarto próximo ao fórum. Tinha suas dúvidas se podia chamar aquela casa velha e improvisada com nome tão imponente. Fórum lembrava das velhas construções do tempo de Roma, e aos embates de Júlio César com Cícero. Ali, tinha que se contentar com João e Francisco, e a briga por causa de uma cerca. A cidade não tinha condições de abrigar um escritório. Por isso, era obrigada a usar um correspondente.

Havia uma ligação no telefone:

- Oi mãe.

- Filho, está tudo bem com você.

- Claro, na medida do possível.

- Quanto tempo você vai ficar aí, meu filho.

- Pelo menos mais 15 dias. Daqui devo viajar para outra cidade.

- Mas filho, que trabalho ruim.

- Não tem jeito, mãe. Foi a única vaga que surgiu. Tive que aceitar. Estou saindo agora. Ligo mais tarde.

- Está bom, filho liga mesmo.

O correspondente era aquele cara que se formou recentemente na faculdade de direito, fez um ano de preparatório para a Ordem do Advogados, e agora está solto no mundo, sem cliente, sem escritório, sem trabalho. Iguais a ele existe um exército de engravatados lisos. Eles vendem a sua forma de trabalho por míseros trinta, ou quarenta reais por audiência para escritórios de escritórios que prestam serviço para outros grandes escritórios em Brasília de filhos de ministros. Ronei teve sorte, conseguiu um contrato que lhe pagasse 1200 reais, mas tinha que viajar para o interior.

Seu celular, sua internet e seus fies não poderiam esperar. Pegou a oportunidade e sumiu para o interior do nordeste, para protocolar papeizinhos em cartórios do interior ou retirar processos. Dava pra levantar uns trocados, embora, muito em breve, até mesmo essa parca fonte de renda corria o risco de sumir. Em breve o mundo todo estaria sujeito a uma virtualização sem limites, em que escritórios em Brasília teriam acesso aos processo do brasil todo, e esta multidão de proletários de gravata seria descartada, sem sequer a carteira assinada que nunca tiveram.

Atravessou correndo uma rua varrida por um vento, que levantou uma tempestade de areia. Segurou a pontas do paletó , que ameaçaram erguer as asas e carrega-lo para as alturas. O sapato estava sujo. Ele precisava de uma graxa, que não teve tempo de passar pela manhã, e entrou na casa adaptada de nome imponente. Lá dentro, escondidos por muralhas de papel envolto em capas verdes, amarrados com barbantes, ouvia apenas a voz dos funcionários contando piadas uns para os outros como quem conversa a distância na feira, de uma barraca para outra. Aguardou uns instantes até que viessem conversar com ele. Uma moça magra veio conversar com ele. Usava uma calça jeans e uma camisa azul com o emblema do tribunal.

- Oi Dr. Ronei. Muitos processos?

- Pencas de processos. Disse remexendo os bolsos do paletó. Retirou um papel amassado com uma relação de números copiados a mão.

- Realmente são muitos. Você trouxe as procurações?

- Protocolei ontem. Acho que já juntaram.

- Vou verificar. Você soube do último caso?

- Do que você está falando?

- Do caso de assassinato de uma família inteira. Homicídio.

- Tem dessas coisas por aqui?

- Não é muito comum, mas acontece. Dessa forma, porém, é a primeira vez.

- Como foi.

- Uma família de um assentamento, foi encontrada toda morta. Marido, mulher e filhos. Falam em chacina.

- Mas tem algum histórico de briga de terra por essas bandas?

- não tem. O provo está dando as terras que tem por aí. Mas pra matar tanta gente de uma vez, só pode ser uma chacina.

- Realmente, é muito estranho. Espera aí. Tem esse número de processo criminal na minha relação.

- Deixa eu ver. É esse mesmo. Pelo visto o Dr. Vai atuar nesse processo. Eu vou pegar esse primeiro pro senhor.

Havia um certo prazer mórbido nas palavras da estagiária. Ela trouxe um processo grande, cheio de laudos e fotos. Tinha chego a pouco tempo, e um outro correspondente tinha passado antes dele para protocolar habilitação do escritório naquele processo. Imaginou que a estagiária tenha feito os mesmo comentários pra ele. Quando abriu o processo e viu as fotos, imaginou porque ele tinha ido embora.

As fotos eram horrendas. Três crianças degoladas, o pai degolado, a mãe degolada. As cabeças pendentes do corpo. Apenas um fina pele, um fio de carne unia as partes do corpo. Os corpos todos retorcidos, demonstravam mortes violentas. Ele nunca tinha visto algo assim. Sequer na capital. Alguém falou de dentro das salas do outro lado do balcão de atendimento.

- É ele que vai ficar com o processo?

- Sim, Senhor Sérgio. Ele é o felizardo.

Um homem magro veio ao encontro deles. Tinha o rosto marcado por manchas, olhos grandes, fundos dentro do rosto.

- Tem que ter um pouco de estômago pra ver isso.

- Estou percebendo.

- O Magistrado quer falar com o Dr. Antes, só por um momento.

Nandi e os Filhos de Hórus (Em Revisão)Where stories live. Discover now