Olhos, Anéis, Árvores e Promessas.

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Eu posso lembrar do exato momento em que percebi não ter uma família comum. Foi quando vi na feira uma menina sendo levada na mão por um homem e uma mulher, eles riam atoa, depois comecei a ver meus amiguinhos do orfanato serem adotados um por um, eu tinha cinco anos. Também posso recordar do momento que descobri o que era verdadeira amizade, Alana e Gil levando a culpa pela minha fuga só para eu não apanhar no dia do meu aniversário. São dias importantes em que o mundo vai se abrindo na sua frente e já é possível enxergar as coisas com mais nitidez, classifica-las e separa-las. Mas o dia em que eu percebi a minha própria fraqueza, esse foi doloroso e me fez conhecer mais a mim mesma, o quanto eu era mentirosa e estupida, meus erros e fracassos, mas também a minha parte boa, aquela que não desiste, aquela que não se entrega ao abismo da solidão e desespero, eu me conheci e a partir desse dia o nome "Plim", com toda sua feiura, teve um significado maior para mim.

Acordei num quarto quentinho, o sol entrava pela janela e meu corpo estava todo moído. Me sentia tonta e fraca e até as minhas vistas estavam embaçadas. Sorri ao ver Blasco dormindo numa cadeira perto da janela. Ele tinha alguns curativos no rosto, mas parecia bem, seu peito subindo e descendo num sono profundo. Tentei me mexer e meu corpo travou no meio do processo, uma dor contundente me fez gemer baixinho e arrisquei algumas posições que pareciam mais agradáveis.

— Não se esforce tanto.

Eu me virei ainda tonta, com os olhos embaçados e doendo, pude ver o velho irmão Gostantin. Ele se aproximou e tocou na minha testa, suspirou aliviado e ficou me olhando em silêncio, sorriu e balançou um sininho.

— Você é uma linda guerreira.

Eu não entendi, mas senti além de suas palavras, apenas por seu jeito de falar entendia que o velho irmão me amava e eu o amava também. Sabia que ele que tinha me curado, todos no bairro que precisavam de atendimento médico e não possuíam muito dinheiro chamavam Gostantin e ele ficava feliz em ser útil.

Uma irmã parou na porta e colocou a mão na boca encarando-me com olhos cheios de lágrimas, correu chamando as outras irmãs. Elas foram entrando no quarto e me cumprimentavam, eu estava com os olhos ardendo mas fiquei feliz. Principalmente quando Treysa apareceu. Ela chorava. Se tinha alguém no mundo que eu pudesse chamar de mãe, essa pessoa seria Treysa. Ela me abraçou e me beijou muito. Meu olho esquerdo me incomodava, comecei a perceber algumas coisas, estava recuperando os sentidos quando a madre superiora Catalina entrou bendizendo os deuses. As irmãs me abraçaram e falaram o quanto tinham se preocupado, no meio da bagunça e da mulherada, pude ver Blasco sentado na sua cadeira, ele chorava, lágrimas no rosto moreno.

Lembrei dele criança quando ganhamos de fim do ano um passeio no grande circo maravilha, ele só falava disso, e quando finalmente entramos no circo e vimos os grandes elefantes, Blasco com seis anos de idade, chorou, perguntamos o porquê e ele disse: "A alegria quando é muita escapa pelos olhos". Eu ri no dia, e ri agora. Fiz sinal pra ele se aproximar, as irmãs abriram espaço e ele me abraçou muito forte.

— Ai! Seu cabeça oca ainda tô machucada.

— Desculpa.

— Tudo bem, só tô meio pra baixo, dói tudo, principalmente aqui. — Disse isso e pus minha mão no olho esquerdo, como eu não tinha percebido antes? Ele estava tampado, todos estavam calados e se olhavam. — O que é isso?

— Acho melhor deixarmos ela descansar. — Disse Catalina. — O irmão Gostantin vai cuidar de você querida. E explicar tudo.

Todos foram saindo. Treysa e Blasco foram os últimos, antes dele passar pela porta me olhou e disse que sentia muito, eu nem precisei que o irmão falasse nada, já sabia, eu estava cega.

Escama NegraWhere stories live. Discover now