Ninguém sabe.

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Foi mais um dia difícil. Na verdade, é difícil não ter dias difíceis.

Hoje precisei ir no supermercado e parece que Madalena adivinha porque se torna um pouquinho mais impossível, acredito que talvez ela não goste de estar em ambientes com muita gente e por isso não colabora comigo. Eu entendo, mas é complicado porque eu não tenho onde deixá-la e por mais que eu explique a ela que não posso confiar nela sozinha em casa e que ela não tem familiares muito dispostos a ajudar, é a mesma coisa de falar com uma parede. Tem vezes que parece surtir efeito, parece até que sente dó de mim, mas em outras, ela se comporta do mesmo jeito.

Sempre evito de levá-la aos lugares onde as pessoas observam muito umas as outras, lugares fechados, ela fica incomodada e eu às vezes acabo não tendo paciência. As pessoas são muito questionadoras e por mais que eu explique tudo sobre a condição dela, seguem a perguntar e sempre paramos nesse mesmo looping de “Você já tentou um psiquiatra? Um psicólogo? Um psicanalista? Um fonoaudiólogo? Um neurologista? Um clínico geral? Uma igreja? Um terreiro? Um centro espírita?” E para todas as perguntas é um “Já” como resposta... Não adianta, porque com qualquer pessoa entramos nessa e isso cansa demais. Você acha mesmo que eu não faria de tudo para salvar minha neta? Eu faria. Eu faria sim e já gastei dinheiro até de onde não tinha, mesmo assim de nada adiantou.

A agitação dela começou antes mesmo de eu pegar o carrinho de compras, mas como a conheço, a distrai facilmente lhe entregando laranjas. Não faço a mínima ideia do porquê que Madalena gosta tanto delas, mas apenas de poder segurar seu próprio saquinho cheio de laranjas, já a faz bastante feliz. Às vezes pego ela cheirando-as e admirando, é sua sobremesa preferida e se quiser fazer ela comer sem dar trabalho, é só prometer uma laranja. Também coloco em bolos e doces porque sei que faz bem, ela não abusa mesmo sendo sua fruta preferida desde criança, a qual ela nunca recusa. Os carrega como um prêmio, talvez até como um troféu, para ela era maravilhoso ter suas próprias laranjas.

Inclusive, os interesses de Madalena são bastante aleatórios. Imagino que alguém que não conviva com ela não perceberia quando ela pede algo, mas eu sempre notei um olhar maior, uma vontade maior de tocar algo sempre quando ela tem interesse naquilo. Primeiro foram lareiras, depois laranjas, em seguida as carnes com batatas e até uma medalhinha. Falando nisso foi a primeira vez que ela apontou para algo e me surpreendeu.

Todos os dias eu assisto novelas que passam as 21:00PM em canal aberto, sempre a coloco sentada ao meu lado, mas ela segue com aquele olhar de quem não tá prestando atenção em nada, malmente dá pra ouvir a respiração dela, é tão calma que parece estar vazia.
Em um desses momentos passou uma propaganda na televisão de um colar simples com uma medalhinha de ouro, tomei um susto quando ela pendeu a cabeça para o lado tentando entender mais e depois apontou.
Daquele dia em diante, toda vez que passava essa bendita propaganda ela ia para frente da tela e ficava com suas mãos espalmadas ali, quase como se pudesse tomar o colar da modelo. Chegou uma época que eu até pedia pra Deus para que o diacho daquela joia não aparecesse mais, porque eu sabia que ela queria só que não tinha dinheiro algum para comprar.

Após tomar ciência que ela não iria parar de pedir aquilo, do jeito dela, e também o colar não parecia que iria parar de passar na televisão, arranjei alguns trocados e fui atrás, a levei em uma loja igual a que aparecia e deixei que ela escolhesse. Engraçado que nem precisei dizer nada, Madalena parecia ter entendido bem o que íamos fazer ali, então só andou e após achá-lo, apontou mais uma vez e o compramos. Foi caro, mas nada foi tão gratificante do que ver aqueles olhos brilhando por um dia inteiro. Parecia não acreditar que havia ganhado um, se esforçava o tempo inteiro para encará-lo e carrega ele no pescoço até hoje. Não sai sem a joia e o único momento em que me permite tirar é quando vou dar banho nela, porque precisei explicar inúmeras vezes que ficar molhando não era muito bom, Madá pareceu entender, já que parou de agarrá-lo toda vez em que eu começava a tirar suas roupas. Eu prometia sempre devolver.

Era assim que ela acreditava em mim, promessas, promessas e mais promessas. Acredito que se tivesse uma boa consciência, Madá seria alguém que cumpre com as suas palavras.

Um homem mais velho nos parou para perguntar o que ela tinha, já que havia uma criança tentando chamar a atenção dela e Madá seguia focada balançando seu saquinho de laranjas. Ele se aproximou e foi um problema, após elogiá-la e chamá-la de branquinha... “O que a branquinha tem?”, pareceu não agradar muito a minha neta, talvez o apelido, talvez ele, talvez o jeito em que perguntou. O olhar subiu até o rosto do homem e o suspiro que deu foi tão forte e demorado, acabou apertando o plástico firmemente, suas unhas cravaram nele e rasgaram o saquinho ameaçando não segurar todos frutos preciosos e irritando mais a moça que rosnou que nem um bicho, motivo suficiente para que eu só sorrisse gentilmente e tirasse-a de longe dele.

Passamos a tarde inteira dentro daquele supermercado, voltamos para casa quando anoitecia e isso significava que eu teria mais trabalho. Fazer a janta, guardar as muitas compras porque eu juntava o dinheiro e deixava pra comprar tudo de uma vez justamente para não ter que ficar saindo de casa com ela, ainda precisava tomar banho, dar banho nela, pentear aqueles cabelos brancos enormes que ela não deixa cortar de jeito nenhum, ainda tinha que me alimentar, alimentar ela e ligar a lareira.

O tempo estava um tanto confuso e me deixava completamente perdida, preocupada. De dia fazia muito calor e de noite muito frio com chuvas fortes, frequentemente eu ficava checando como Madalena estava se sentindo e como ia a temperatura corporal, já que quando o clima mudava assim, acabava trazendo consequentemente uma onda de resfriados e ataques nas alergias. Cá entre nós, eu morria de medo de ela adoecer e eu não descobrir cedo, porque ela não expressa dor, é muito difícil. Madá não diz onde dói, não informa porquê dói, nem sequer demonstra incômodo, as coisas são na base da adivinhação e do cuidado, tenho que ser precavida.

Por causa desse frio que faz, venta tanto que as janelas chegam a tremer, então toda noite ligo a lareira para ajudar a aquecer e ela acabou pegando esse costume de agora esperar. Assim que dá o horário fica me encarando como alguém que pergunta “Não vai ligar hoje? Você está ligando todos os dias, já deu a hora”. Às vezes ignoro, mas ela vem até a mim e me segue igual uma sombra e eu tenho que obedecer porque até me assusto com Madalena e aquele seu rosto inexpressivo. Mas a mente fica só matutando em como vai ser quando essa época passar, o calor vir e ela seguir querendo que eu ligue aquelas lenhas todos os dias. Vai ser uma luta para convencê-la a largar de mão nas noites de calor.

Chegamos em casa, fiz tudo o que precisava e me sentei para descansar bem em frente a minha neta que estava sentadinha em sua típica posição. Era muito bonitinha assim com suas mãos no colo, as perninhas cruzadas, a vó sentia tanta vontade de ir lá e dar um beijo nas bochechas ruborizadas, mas me segurava para não invadir o espaço dela.

O momento onde as madeiras começam a estalar sempre chega, parece ser o preferido dela onde o fogo fica mais alto e o calor também, a pele dela mostrava o quão sensível era porque ia ficando um tanto avermelhada, porém era seguro, jamais deixaria que ficasse tão perto a ponto de se queimar, de jeito nenhum.

Foquei mais meus olhos nela, Madalena seguia imóvel assistindo ao show das chamas se movendo junto com as ondas de calor que eram visíveis. A reparei respirar mais fundo e ai foi aumentando mais o ritmo, e mais, e mais, e mais, até que começou a negar com a cabeça como em uma conversa. Sabe quando alguém está nos apresentando inúmeros argumentos só que nenhum deles lhe cabe e seu corpo fica inquieto demais a ponto de você precisar demonstrar que não está concordando com aquilo, mesmo que não queira interromper a outra pessoa que fala, então você nega com a cabeça, nega veemente. Era desse jeito que ela negava, o movimento não era constante e contínuo. Balançava a cabeça, parava como se estivesse escutando e depois balançava mais, até que fechou suas pálpebras com força e se inclinou para trás como se estivesse se afastando de algum perigo.

Ao ver que aquilo ia piorar, corri até ela e segurei seu rosto, fazendo que me encarasse e notasse o que era realidade e o que não. Me senti mal por não saber o que se passava na cabeça daquela menina, nunca soube.

Ninguém nunca sabe o que se passa na cabeça de Madalena.

Em Outra Realidade - Romance Lésbico. (CONCLUÍDO)Where stories live. Discover now