CAPÍTULO 69 - DE VOLTA ÀS NASCENTES

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Recebemos de braços abertos as primeiras luzes do verão. Os passeios de Marielle se transformaram nos passeios da família. Percorrer as praias do Vístula e a floresta dos penhascos naquela época do ano era mágico. O calor e os belos fins de tarde emolduravam nossas brincadeiras com as crianças. Minha esposa parecia mais cheia de vida do que nunca, tornando os dias daquele verão quentes, iluminados e intensos. Sensações e paisagens até então inéditas, que me fizeram descobrir uma nova Balga.

Apesar de receber várias propostas de Gudruk, o nosso querido Voivoda para assumir postos importantes na administração da cidadela, resolvi resgatar o ofício de tio Aldo. Abri a ferraria Kovach-Andruliz numa bela construção ao lado da praça do mercado, que também servia de nossa residência. Martha morava conosco e acompanhava feliz o crescimento dos netos. Com algum esforço, consegui trazer de volta os aprendizes que conseguiram escapar dos teutões naquele fatídico dia. Tomen se tornara o chefe da oficina e comandava os trabalhos com mão firme, mas justa. Com Balga transformando-se rapidamente no principal porto do Báltico, nossas ferramentas iam ganhando fama entre os lituanos, poloneses e nórdicos que agora circulavam livremente pela cidadela. A vida não poderia ser mais perfeita, não fossem as perguntas que teimavam em não calar.

"Quem era Janus Kovach, o misterioso primo de minha mãe. Como sabia tanto de todos nós,e de nossos inimigos?"

"Que espécie de bruxo era ele, dono de tantos sortilégios e encantamentos?"

Essas questões me assombravam mais e mais a cada dia, despertando outra sensação muito familiar. O velho chamado das nascentes. Precisava retornar ao lago de Mauerseee responder pelo menos uma das perguntas. Uma que só dependia de mim, ao contrário das demais.

"O que aconteceu com a caverna de Mauersee? Por que Von Reynes e seus homens não a encontraram. Será mesmo que o teto desabou completamente, selando-a para sempre com todos os seus segredos?"

Marielle e Martha conheciam-me como ninguém. Sentiam minha crescente inquietação e, sem meias-voltas foi mamãe num almoço quem primeiro me questionou.

- O que vos aflige meu filho?

Parei a colher a meio caminho da boca e pousei-a no prato.

- Perdão mamãe! Por que a pergunta?

- Seu espírito está intranquilo, parece que a paz e a tranquilidade da vida atual não são suficientes para vossa mercê! Respondeu ela, e complementou.

- Já não travamos batalhas suficientes?

- Também sinto o mesmo Rayd, por favor conte-nos o que atormenta vosso coração? Questionou Marielle.

Dei-me por vencido, não poderia esconder-lhes meus sentimentos, mesmo que quisesse.

- Pretendo voltar ao lago das nascentes em Mauersee. Mas somente com vossas bençãos mamãe, e com a sua aprovação Marielle! Respondi conciliador.

- E o que há de tão importante naquele lugar? Tornou Marielle.

- Várias questões nebulosas ficaram mal resolvidas desde o fim da guerra. Principalmente em relação a nós três, e eu preciso ir em busca das respostas! Respondi.

- E quais seriam essas questões? Tornou Martha.

Nesse ponto contei-lhes sobre a caverna de Mauersee e sobre a curiosa pedra que me atraíra para lá. Descrevi também a missão infrutífera de Von Reynes tentando encontrar a tal caverna.

- Muitos duvidaram de mim, muitos me chamaram de mentiroso, e não os culpo!

- Além do mais, eu me apaixonei pelo lugar. É um lago deslumbrante, e por certo muito piscoso, cercado de uma bela floresta e imponentes montanhas. Gostaria muito de voltar até lá e escolher um local para construir um refúgio de verão para nós! Disse olhando carinhoso para Marielle.

- Uma segunda casa, e para que uma segunda casa? Já não temos o bastante para nós? Questionou Marielle exasperada.

Silenciei. Sabia que o argumento era fraco demais para ser defendido. E acima de tudo, tinha prometido a mim mesmo não dar mais ouvidos às perguntas sem resposta. Mas falhei.

Decidi partir com poucos mantimentos, viajaria mais leve e mais rápido, e retornaria o mais depressa possível. Segui exatamente a mesma trilha que cortava a floresta de Alle, saindo pelo vale do Alle-Aschöwne. Segui no meu costumeiro ritmo urgente, acampando no lugar onde vira pela primeira vez a alcateia de Outono. A vista deslumbrante do vale estava intocada e banhada pela lua de incomum tom avermelhado ficava ainda mais etérea. A saudade do grande lobo cutucou meu peito. Há muito não o via. Desde a batalha do capítulo para ser mais exato. Tentei chamá-lo em meus pensamentos, mas sem resposta. Segui pelas encostas que ladeavam o serpenteante Alle até sua junção com o Aschwöne. Segui com ele por alguns dias até me deparar com a inconfundível floresta que cercava o lago das nascentes. Havia chegado. Lá estava eu novamente naquele lugar mágico e misterioso. A lua que parecia me acompanhar, agora atingia o seu plenilúnio brilhando avermelhada num crepúsculo surreal.

No verão, a floresta ficava mais exuberante e viva. Muito diferente da primeira vez que a vi. As fileiras de pinheiros, carvalhos e abetos podiam ser bem distinguidas sem a neve que as encobria. Construí um confortável abrigo num ponto próximo do lago, pois pretendia apreciar o pôr-do-sol que, vindo do lado oposto, banhava as encostas das montanhas com uma luz dourada reconfortante. Ela pintava tudo de um tom laranja terroso e brilhante. Um som à minha esquerda, tirou-me desse enlevo crepuscular. Outono chegou-se com sua timidez curiosa e deitou-se ao meu lado enquanto os outros membros da alcateia observavam à uma pequena distância. Pousei o meu braço suavemente sobre o seu pescoço sentindo sua energia amistosa invadir meu coração. Senti que a vida na cidade me afastaria deles. Não sei se me acostumaria a ficar longe da minha família da floresta, essa seria mais uma razão para ter uma cabana nesse lugar tão deslumbrante. A vida em Balga podia ser fascinante e movimentada, mas o chamado da natureza era irresistível para mim. A noite desceu rápida, subitamente Outono levantou-se e se colocou em prontidão, rosnava baixinho num tom ansioso bem conhecido por mim. Perscrutei entre as árvores na direção em que ele olhava, mas não consegui perceber nada de estranho ou perigoso. Saquei uma das gêmeas. Nada. Não havia brilho emanando delas. Levantei-me curioso e só então pude ouvir. Uma melodia suave e misteriosa parecia ecoar nos troncos das árvores.

Apurei meus ouvidos próximo a um grande pinheiro e o som ficou mais claro. Um assobio afinado, entrecortado por sussurros melodiosos e inexplicavelmente reconfortantes, eram acompanhados por um instrumento de cordas. A canção era enigmaticamente familiar, nunca a tinha ouvido, mas parecia conhecê-la há muito tempo. Sem pensar acendi uma tochae segui o som como que hipnotizado. Outono me seguiu. Contornamos o lago em algumas horas, e no meio da noite atingimos a nascente da caverna. Dali, pude ouvir nitidamente que o som vinha de mais acima, do ponto onde antes havia a entrada da caverna. Subimos pelo aclive suave da montanha e em seu final constatei atônito que ela estava lá. A caverna do olho de âmbar estava lá, intacta. Aproximei-me da entrada e tateei-a como que constatando sua integridade. Tudo estava como sempre foi.

A melodia agora se transformara numa canção, e o cantor parecia fazer questão de ser notado. Segui destemido e movido por uma curiosidade pungente em direção ao fundo da caverna. À distância, pude notar que o grande salão do olho estava esplendidamente iluminado por uma grande fogueira. Uma pessoa a alimentava enquanto dedilhava um instrumento desconhecido.

Ao me ver, a figura parou imediatamente com a cantoria e acenou para que me aproximasse. Mesmo sendo apenas uma silhueta contra as chamas, e mesmo não o conhecendo pessoalmente, tinha comigo que finalmente encontrara quem buscava. À minha frente sorrindo-me cativante e enigmático, estava o misterioso Janus Kovach.

Rayd e a lua do caçador Volume 2 - O NecromanteWhere stories live. Discover now