CAPÍTULO 36 - A ASSEMBLEIA DAS FERAS

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Um duto circular que começava no outro lado da galeria era a origem dos sons. Estava seco a muito tempo, revelandoseu abandono. Os dois entreolharam-se aliviados, não teriam que se arrastar por águas pútridas novamente. Seguiram engatinhando devagar pelo duto relativamente alto, mas estreito e áspero. Escavado na pedra, possuía buracos e rachaduras em longos intervalos por quase toda a sua extensão

- É, esse aqui não serve mais como esgoto há muito tempo! Cochichou Algimas para si mesmo.

Zig ia à frente, já que o Rato alegou saber a direção dos sons, mas não como chegar lá. Era puro medo. O sujeito se mostrava aterrorizado e contrariado com a ideia de ser obrigado a ficar em um lugar amaldiçoado como Honeda. Ouvira boatos tenebrosos, e agora comprovava-os pessoalmente.

Zigseguia sem saber ao certo para onde estava indo, apenas sentia que devia prosseguir, algo surgiria. Não demorou muito para começar a ouvir os estranhos sons relatados por Algimas. Mas apenas os ouvia, não conseguia ver o que estava acontecendo. Seguiu em frente até encontrar uma nova fenda, era de bom tamanho, dali pôde avistar uma espécie de salão mais abaixo, e o que viu o deixou sem fôlego.

Dezenas de criaturas se perfilavam diante de uma espécie de altar, alguns soldados as cercavam com lanças em riste e pareciam manter tudo sob controle. As feras não se mexiam, cabisbaixas soltavam grunhidos e rosnados. Em seus pescoços, pesadas algemas as prendiam umas às outras através de grossas correntes. Ao final, um sujeito grande e forte segurava a extremidade da corrente.Todos pareciam estar esperando algo ou alguém.

- O...o que está acontecendo aí, porque parou Esqueleto? Questionou o Rato ansioso.

- Silêncio, há criaturas e soldados lá embaixo, se nos ouvirem seremos trucidados! Sussurrou Zig enquanto se voltava para o amigo.

- Eu....eu quero ver também! Disse Algimas se arrastando pelos cotovelos até onde Zig estava.

- Não! Fique aí mesmo, não podemos correr nenhum risco! Tornou Esqueleto.

- Eu quero ver, eu tenho direito, não vou ficar aqui deitado esperando e...!

- Está bem, está bem, eu vou em frente, fique aqui,mas em silêncio! Zig contrariado seguiu em frente, arrastando-se o mais silenciosamente que podia.

Mais à frente encontrou uma grande abertura na pedra com um pequeno recuo na parede oposta, dali tinha uma excelente visão do salão. Agradeceu à oportuna indignação do Rato, acomodou-se no recuo e, oculto pelas sombras, aguardou o que aconteceria lá embaixo, naquela assembleia das feras.

A porta por detrás do púlpito se abriu com um baque surdo. Uma neblina branca e geladaantecedeu a entrada de um homem vestido em um impressionante hábito negro. Em seguida, uma ladainha se iniciou, batidas de tambores ritmadas, entremeadas por cantorias graves e ininteligíveis. Uma flauta de timbre sombrio preenchia a melodia e o ambiente.

O sargento-mor GhoranDitrich estava em êxtase. Seus encontros com o sagrado se davam através daquelas cerimônias. E tudo isso era proporcionado pelo divinal bispo Karvelis e a prodigiosa aura mágica que o envolvia. Sem perceber e sem poder se controlar, ele começou a balouçar suavemente de um lado para o outro junto de suas crianças acorrentadas.Sim, ele as consideravasua propriedade, crianças ingênuas e submissas, entregues aos seus cuidados pela poderosa Igreja. Tinha problemas com as de olhos vermelhos, mas após as cerimônias elas obedeciam cegamente aos textos sagrados pregados pelo enviado, o santíssimo bispo Karvelis.

Von Plauen assistia tudo à distância, tanto física como espiritualmente. Guardava um profundo desprezo pelos sortilégios obscuros do bispo, e seu flerte com o oculto. O desprezo na realidade, era um disfarce para o medo profundo que o tomava cada vez que era obrigado a assistir às sandices necromantes do governante da Voivodia. Mas, como militar e por ordens diretas do irmão Grão-Mestre, seu dever era obedecê-lo cegamente, e por fim, ele jamais admitiria temê-lo mais do que respeitá-lo. Mas acima de tudo aceitara as feras como um bem-vindo reforço às suas já desmanteladas fileiras. Aguardava pacientemente o fim da cerimônia para então começar junto com Ghoran o treinamento militar daquelas aberrações.

Alimentado e revigorado, Karvelis sentia a energia vital pulsar em seu corpo. Olhava para a grande assembleia formada pelas feras com uma mescla de êxtase e desprezo. Sentindo se agigantar as forças que vinham de suas profundezas começou a sua pregação troante e compassada.

- Meus filhos, os ventos da benção os trouxeram até esse sagrado momento!

- Todos vós sois fruto da pestilência macabra do pecado original!

- Estavam destinados a sofrer os mais tenebrosos castigos enviados pelo Todo-Poderoso!

- Os sofrimentos físicos a vós impostos seriam carregados por toda sua desgraçada vida!

- Mas a intervenção da sagrada Igreja vos salvastes!

- Quem vos salvastes minhas amadas crianças?

Um estranho coro de vozes e rosnados respondeu em uníssono. Zig sentiu as horripilações por todo o corpo.

- O pai, Karvelis o pai! As criaturas respondiam seguindo o ritmo dos instrumentos.

- Quem é o pai, o que é o pai? O estranho coro fez-se novamente.

- Karvelis...o pai.....o enviado do Todo-Poderoso!

- Exultemos Sua benevolência! Bradou Karvelis.

- Regozijemo-nos de sua infinita bondade e amor!

Zig não tinha muita certeza, mas o sacerdote parecia ter aumentado de altura e envergadura. Seus longos braços se estendiam sobre a multidão como asas negras. Os olhos do Esqueleto se arregalavam à cada palavra. O homem parecia se transformar enquanto uma aura negra surgia à sua volta.

- Pois devemos graças à Ele, devemos cumprir seus desígnios, devemos lutar contra os infiéis que querem o Mal governando esse mundo. Um mundo que vos pertence, que pertence a todos nós!

- Meus filhos, quais são os desígnios, qual é a Lei?

- Seguir o pai, seguir o Enviado! Matar....infiéis......em nome do Todo-Poderoso! Respondeu o coro de feras no ritmo hipnotizante da ladainha!

- Essa é a Lei, a eterna e divina Lei! Bradou o bispo enquanto as feras se curvavam temerosas. Uma forte ventania vinda não se sabe de onde sacudiu o local. Seus gritos pareciam emitir ondas de energia que irradiavam por todo o ambiente levadas pelo misterioso vento. As criaturas estremeciam ante a força sobrenatural que emanava daquele homem. Para Zig, não podia ser diferente, estava em pânico, petrificado pelo poder obscuro que o homem dominava e irradiava.

A cerimônia se estendeu por mais algum tempo. Ao final, as criaturas entoavam em uma língua estranha, uma canção exótica e envolvente, enquanto eram puxados para a saída. Oenorme sujeito que Zig vira no início de tudo,ia à frente, e todos eram seguidos à distância pelos soldados. Por último, vestido com sua tradicional armadura, vinha o General Aaron Von Plauen. Andava rápido e procurava passar longe do altar, onde a estranha figura do Bispo transfigurado ainda respirava ofegante sobre o púlpito de pedra.

Karvelis ficou mais algum tempo ali, sozinho sobre o altar. Em seguida levantou a cabeça e olhou ao redor. O salão estava vazio, restara apenas ele, que fazia questão da solidãoapós cada desgastante cerimônia. Olhou em volta satisfeito e em dado momento parou na direção de Zig. Mesmo com o rosto encoberto pelo capuz do hábito, Esqueleto teve a certeza de que o bispo negro o olhava diretamente. Arrastou-se mais fundo no recuo e levou as mãos à boca para não emitir nem um mísero suspiro e aguardou. A angústia parecia não ter fim, o clérigo envolto em sombras ficou olhando Zig com um brilho estranho no olhar, frio e vazio por um tempo sem fim. Karvelis então desviou os olhos calmamente, fechou o livro que jazia no púlpito e se retirou pela porta de onde viera. Zig paralisado, sentia que o sangue voltava lentamente às suas veias. Recostou-se e voltou a respirar.

Rayd e a lua do caçador Volume 2 - O NecromanteWhere stories live. Discover now