Córdoba, há doze anos.
Milo Giordani
Sobrevivi ao inferno.
Passei treze dias como um verdadeiro morto-vivo naquela masmorra fria. Perdi onze quilos, a minha pele estava levemente amarelada, nódoas negras estavam espalhadas por todos os meus braços, ombros e costas. Parecia a mamba-negra do Tim quando trocava de pele, a minha estava em processo de troca. Possuía escaras por toda a pele, no meu abdômen ossos pontudos perfuravam o couro elástico que revestia o meu corpo esquelético.
— Milo! — Luna me abraçou como se fosse o 'designer' das suas bonecas preferidas. Com tanta força que tinha a certeza que os meus ossos a magoou no processo. — Perdoe-me...Por favor...
— Shiii...Estou bem, Lua. — Ditei o nome carinhoso que a mamã costumava usar. — Preciso de um banho. Estou a cheirar muito mal...
— Tive tantas saudades tuas. O Paco e Tim não me deixaram os acompanhar. Eu sou tão forte como vocês e...— Fungou no meu peito, minha pele absorveu todas as suas lágrimas. — Eu sou sua irmã, Milo. Eu amo-te. E...não me perdoaria caso ele tivesse te magoado ao ponto de mat...
— Estou aqui, Lua. — Passei as mãos em torno dos seus ombros, mal sabia que esta seria uma das últimas vezes que o faria. Que abraçaria a minha própria irmã. Que permitiria uma simples troca de afetos através do contato humano, tal ato seria banido da minha vida para sempre. — Vou tomar um banho. Okay?
Seus grandes olhos claros piscaram em concordância.
Doeu tomar banho.
Doeu como o início daquela tortura.
Os vergões estavam em processo de cura.
Porém, durante este procedimento não tomei nenhuma medicação para a regeneração da pele de forma correta, qualquer cuidado adicional como limpeza com produtos designados para cortes tão profundos foram descartados.
Curei sem a ajuda de remédios ou amparo médico.
— Milo? — A voz da abuela soou pelo quarto.
— Estou aqui. — Vesti quatro camadas de camisas e um casaco que não permitiria que ela descobrisse aquilo que aconteceu há alguns passos de distância de si. Abuela não se perdoaria, caso soubesse aquilo que seu filho cometeu comigo.
— Bênção, Abuela?
Lupita fez o sinal de cruz na minha testa e proferiu a sua bênção, entretanto os seus olhos me analisaram com tristeza.
— Hijo, o que aconteceu?
— Tive saudades tuas, avó.
— Milo Giordani. — Bateu com a bengala no tapete sob os nossos pés.
— Passei por um treino árduo em Cádis, abuela.
A única mentira que proferi foi com relação ao local, todavia havia passado por um dos treinos mais severos que Facundo planeara para seu filho mais velho, seu sucessor. Quase morri à sua mercê, porém não estava pronto para queimar nas chamas do inferno ainda.
— Pensas que nasci ontem, Milo?
— Sobrevivi, Abuela.
Pela primeira vez nos meus treze anos vi os olhos da minha avó a navegar por um oceano em lágrimas.
— Não és uma máquina de matar, Milo. — Ela me abraçou com força, assim como Lua fez há alguns segundos. — Não precisas retirar de dentro de si toda a bondade que possui. És um garoto especial, hijo. Seu coração é bravo, leal e comprometido com quem amas. Não permita que Facundo roube isto de ti, meu menino.
Ela pousou um dedo sobre o meu conta-tempo.
— Sua mãe teria tanto orgulho do filho que és. Do irmão protetor, do garoto que tenta proteger a García.
— Abuela, não chore...
— Promete-me algo, Milo?
Movi a cabeça num poderoso sim.
— Quando a sua mente estiver nublada com a maldade provinda do Facundo, olhe para o céu de Córdoba. Para o lugar onde a sua mãe olha por ti. Saberá qual caminho seguir, se pensares como Esperanza e não como o seu pai será bem-sucedido em todos os projetos da sua vida. Prometa-me?
— Sim, Abuela.
Ela suspirou de alívio.
🦋
— Isabel? — Gritei entre as árvores que fechavam a floresta num recôndito apenas nosso.
Ela estava ao de longe.
Parou bruscamente ao me ver.
De imediato, começou a correr a toda velocidade.
Nossos corpos colidiram, arfei com a batida dolorosa nas minhas costas castigadas pelos pregos afiados.
— Por onde estivestes? — Ela bateu no meu peito com força ao passo que uma lágrima deslizou pelo caminho das suas sardas avermelhadas. — Pensei que me abandonarias.
— Nunca o farei.
— Prometa!
Soltei um palavrão diante de mais uma promessa.
— Estou a espera...
— O que queres ouvir, Isabel García?
— Que nunca e em circunstância algumas nossas vidas serão separadas.
Ela cheirava a junção de morangos, flor de laranjeira, a grafite e a pureza.
Eu amava o seu aroma.
— Eu prometo a ti Isabel García que jamais te abandonarei. — Vasculhei a minha mente, uma das muitas histórias bíblicas contadas pela Abuela rastejou por minha mente firmada em maldade. — Te seguirei para onde quer que fores, o teu povo será o meu povo...há uma parte sobre Deus, mas visto a minha inclinação para uma má reputação acredito que Ele não firmará um pacto comigo.
Ela sorriu.
— Tudo que realmente importa é que não te perdi, garoto mistério. Não posso viver num mundo sem ti.
Pode sim, Isabel.
Deveria.
Serei o causador da sua morte.
— Não posso perder a ti. — Sussurrou enquanto os seus braços magricelas agarravam-me a si como numa proteção. — Senti tanto a tua falta.
E eu de ti, Isabel.
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Em Córdoba não há flores - Filhos Do Cartel Do Sul 1
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