Milo Giordani - Há doze anos

85 19 2
                                    

Córdoba - Há doze anos

Oops! This image does not follow our content guidelines. To continue publishing, please remove it or upload a different image.

Córdoba - Há doze anos

Milo Giordani

O punhal de lâmina curta perfurou a pele acima da minha orelha.

— Desculpa, Milo. — Timo pediu com um olhar alimentado por ferocidade e culpa. — Juro que não queria fazer-te sangrar.

Segurei a mão contra o lado esquerdo do rosto a sentir o sangue quente escorrer por entre os meus dedos.

— Talvez será melhor rever a sua defesa e parar de navegar os seus pensamentos para longe. — Paco orientou com cautela. Por dias, percebi que ele tentava desvendar aquilo que estava a acontecer comigo e os motivos de sumir por horas a fio na floresta fria.

Um pano úmido foi posto sobre o possível corte que latejava.

— Cinco ou seis pontos no máximo. — Esteban que presenciava os nossos treinos de faca pronunciou a desviar o assunto que Paco sugestivamente levantara. — Buscarei o material de primeiro socorro, espere aqui.

Timo bateu nos meus ombros, numa outra tentativa de desculpa silenciosa. Paco e ele deixaram-me na área onde praticávamos tiro ao alvo, boxe e lutas de facas.

— Não costumas ser aquele que sangra, Milo. — Esteban perpassou uma linha grossa sobre a agulha que logo estaria cravada na minha pele. — Queres contar-me algo?

— Não, senhor.

O homem inteiramente tatuado soltou um suspiro de resignação.

— A garota García está fora dos limites, hijo.

A ponta da agulha perfurou a minha pele que ardia intensamente. Cerrei o maxilar com força a cada nova pontada contra a minha carne.

— Ela é uma García e você um Giordani. Lembra-te disso. — Sangue ainda escorria entre as minhas mãos quando Esteban trouxe ao de cima aquela revelação que nos últimos dias tentava esquecer.

Limpei o rosto com uma toalha molhada a tentar dissipar aquilo que Esteban falara.

Em apenas alguns minutos estava entre a sombra das árvores. Isabel desenhava num caderno velho. Por dias perguntei-me a razão de continuar a vir até aqui. No princípio, o meu plano era apenas observar Isabel à distância. Não planeava ficar perto dela, muito menos conversar. Entretanto, aqui com Isabel esquecia o mundo obscuro em que vivia por míseros segundos. Poderia ser um garoto normal, sem um sobrenome que imperava como uma coroa de espinhos.

— Olá. — Falou sem ao menos erguer a cabeça, ela sentia a minha presença há distância.

Sentei ao seu lado a perceber uma mancha logo abaixo do seu queixo. Há dias havia reparado, porém não havia mencionado aquele pormenor.

— Dói? — Perguntei em alta voz aquilo que julgava não pronunciar.

— O que aconteceu? — Isabel virou a cabeça lentamente na minha direção, os seus olhos dobraram de tamanho ao perceber uma ligadura sobre a minha orelha.

— Isto não é nada. Caí de uma árvore mais cedo. Estou bem. — Menti, descaradamente para a única pessoa que não merecia as minhas mentiras. — Então, isto dói?

Isabel meneou a cabeça pensativa.

Apontei para seu queixo.

— Não. O papá me levará num dermatologista em alguns dias. — Seus dedos estavam impregnados pelo pó negro da coleção em cera. — Tens a certeza que estás bem?

Os seus olhos verdes decaíram sob a minha orelha com tristeza.

— Toda a certeza. — O corte latejava, apenas. Houve piores, certamente não a diria. Mas aos doze já colecionava mais cicatrizes que um homem adulto poderia possuir. — O que desenhas?

— Borboletas. O que seria? — Franziu o nariz e as suas sardas ganharam uma tonalidade poderosa. — Com belas asas coloridas. Não vais cortar nenhuma delas. — Alegou a mover o dedo mindinho em direção ao meu que estava pousado contra a relva.

Lentamente o seu dedo tocou o meu num gesto suave.

— Prometeste que não as magoaria. — Sussurrou a mirar um halo de borboletas que sobrevoava sob as nossas cabeças.

— Não vou, Isabel.

Desvaneci-me furtivamente do seu toque. Se Isabel reparou, não houve nenhum indício de decepção em seu rosto.

— Trouxe isto para você. — Retirei de dentro do casaco um novo caderno especial para desenhos como aqueles que ela criava e um pacote dos doces preferidos de Timo, Skittles.

— Obrigada. — Ditou quase emocionada ao apanhar o caderno A4. — Não tenho como agradecê-lo por isto.

— Continue a desenhar, Isabel.

Isabel abriu o pacote de guloseimas coloridas.

— Isto é bom. — Posicionou o pacote entre nós de forma que pudesse servir-me também. — Tem gosto de nuvens.

Se pudesse sorrir, este seria o momento.

— Já provaste as nuvens? — Inquiri a deitar na relva ao passo que lhe espreitava a desenhar no seu novo caderno.

— Não, mas receio que este seja o gosto original. — Afirmou a sorrir.

O sol fraco iluminava a cor carmesim dos seus fios longos.

Aquela cor me perseguiria por toda a vida.

Vermelho vivo, como os meus pecados.

Em Córdoba não há flores - Filhos Do Cartel Do Sul 1 Where stories live. Discover now