10° Consequências

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Marreco,

Não dormi nada essa noite, na moral. Fiquei até altas horas da manhã sentado lá em cima com a filha do Baiano. Depois, quando tentei descansar, a mente borbulhava pra caralho; não preguei os olhos. A erva, que tem o papel de relaxar e dar sono, já não faz efeito nenhum. Uns cochilos foram o máximo que consegui.

Faltando pouco pra meio-dia, decidi levantar e pagar uma ducha. De nada adiantaria permanecer na cama.

Após um banho gelado para despertar, vesti uma bermuda, calcei um chinelo, camisa da Nike e um boné preto que achei aqui. Nem sei de qual marca, mas não me pareceu brasileira. Tá maneiro, vai assim mesmo.

Tenho um carvão guardado, pretendo mandar meu piloto buscar uns trajes urgente.

Já logo passei mensagem pro Galego, mandando reunir a tropa e encostar.

Antes de sair do quarto, ajeito a cama, porque esse homem aqui foi dona Neusa quem criou. Sei fazer o que for preciso numa casa: lavar, passar, cozinhar, varrer. Ela me botava até para estender roupas na corda. Mulher forte, cheia de autoridade, me educou da melhor maneira que pôde, e eu sou grato. Ela fez um homem, mesmo que esse homem tenha sido seu maior desgosto.  

Sinto saudade daquela época em que minha maior obrigação era fazer o que ela pedia. Lavar uma louça, arrumar a cama, varrer uma casa. Depois podia ir brincar na rua com a molecada, jogar bola, gude, soltar pipa. Ou apenas sentar na calçada pra resenhar. Nosso lazer preferido era imitar os caras do movimento, reproduzir o que víamos pela janela de casa. Um pedaço de papelão se tornava uma pistola ou um fuzil de mentira. As sacolas nas costas eram as mochilas; o chinelo velho e furado, o rádio.

Na nossa cabecinha de criança eles eram heróis mais reais e alcançáveis do que o Batman, Superman, Super Shock. O crime era nosso sonho de vida, nossa meta. Queríamos crescer e ser tão maneiros, ricos e poderosos quanto eles eram aos nossos olhos inocentes.

Ou poderíamos, quem sabe, ser jogadores profissionais, Mc. Quem não tinha talento nenhum, almejava a primeira opção, o crime. Lembro de pensar que eles tinham tanto dinheiro que podiam comprar um avião. Às vezes eu imaginava algo menor, como sorvete. Quanto biscoito eles não podiam comer, se quisessem? Quantos video games poderiam ter?

Eu via os cordões deles e me imaginava com um igual quando crescesse. Uma vez fiz um com uma corrente de bicicleta, o pingente era um pedaço de lata dourada. Eu imitava eles atirando, sabia o dialeto que usavam e repetia as gírias. Sempre fui invocadão desde menor, fingia matar os outros moleques, obrigava eles a deitarem no chão, batia nas pernas com pedaço de cano. Eu sempre era o chefe, eles os soldados. Eu não brincava se não fosse para ser o dono do morro, o mais brabo. Enrolava uma folha de caderno e fingia fumar um baseado, com apenas sete anos de idade. 

Agora tu vê... brinquei tanto daquilo que acabou se tornando real. Mas a brincadeira hoje não é nada divertida. Nem naquele tempo deveria ter sido. Éramos crianças, deveriamos aproveitar a infância, não imitar uma realidade pesada daquela. 

O tempo passa e seu desejo não é mais só poder comprar o melhor brinquedo, a bike mais maneira, o tênis mais bolado. Na adolescência, tu também quer comer piranha, portar arma, ter dinheiro pra bancar um combo no baile. Tu quer atrair olhares, se provar pros amigos, pras minas.

Eu odiava a miséria, odiava me sentir perdedor, querer e não poder ter. Nunca gostei de morar naquele barraco humilde, queria tirar minha família dali. Ambicionava os melhores carros, as melhores motos. Enquanto os outros se contentavam com peças falsificadas, eu esperava, juntava a grana e comprava a original. Eles apareciam com dez camisas novas por cem, eu, com uma só, mas me sentia o tal usando marca cara.

Love na Rocinha( DEGUSTAÇÃO)Where stories live. Discover now