Fantasia colorida, realidade cinzenta

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Ir para a escola continuou sendo um dever o qual Leona gostaria de poder renunciar. Contudo, admitia, era ótimo não ser chamada de nariguda o tempo inteiro. Verônica, Simon e Zeke, os amigos que fez na Schoul, eram... bons. A facilidade com que os refugiados a acolheram, porém, a atormentava. Tudo que vem fácil, vai fácil. Leona, por suas "experiências" com órfãos e outros adolescentes, duvidava da amizade dos três colegas. Por conseguinte, por ora, ela se limitava a avaliar com muito cuidado e cautela (e sobretudo prevenção) o comportamento de seus "amigos".

— Você não devia chegar tão tarde em casa, Simon. — Verônica repreendia Simon certa vez durante uma aula de biologia parada. — E nem xingar os funcionários. A diretora reclamou comigo, sabe. — Verônica era um ano mais nova, mas agia como se fosse a irmã mais velha.

— Aquele orfanato não é a nossa casa, Nica. — Contrariou Simon, condescendente, sem olhar nos olhos dela. — E eu não devo satisfação a ninguém. Aquelas pessoas não são o papai e a mamãe.

Leona sabia o quão péssimo era morar num orfanato. Simon e Verônica, pelo tom das conversas, viviam em um há pelo menos três anos. No orfanato da rainha, Leona conviveu com crianças detestáveis e adultos negligentes, e por isso concebia o lado de Simon. No entanto, Leona se revoltava com o fato de as molecagens do rapaz sempre recaírem em Verônica, como se fosse ela a responsável do mau comportamento do irmão. Em adição, Simon não se esforçava nem um tiquinho para aliviar a barra da irmã.

Leona não se sentia inclinada a expressar sua opinião, mas, ao mesmo tempo, vê-lo ferrando Verônica a enfuriava, e já não estava de bom humor naquela manhã. Ela deixou-os debatendo e foi sentar junto a Zeke.

O liberiano se atrapalhava tentando copiar o texto de biologia escrito na lousa. Zeke era o que as pessoas chamam de "faísca atrasada". Na opinião de Leona, talvez não houvessem faíscas para se acender.

— Está tudo bem, Zeke?

— Tudo. Já estou lá no fim do quadro. — E estendeu o lápis parcialmente mastigado na direção da lousa.

Normalmente, Zeke demorava uma aula inteira para copiar dez linhas. Leona olhou de relance o caderno do colega. Zeke pulara alguns parágrafos durante a transcrita, por isso ele pensava estar terminando.

— Você esqueceu algumas partes do texto. — Avisou Leona, meio comiserada, meio constrangida.

— Esqueci? — Perplexo, Zeke encarou o quadro, e depois baixou a face para o caderno. — Puxa, Esqueci mesmo! Eu pensei que estava acabando! — Chateado, Zeke arrancou a folha do caderno, amassou-a e enfiou-a dentro do estojo. — Eu não consigo lembrar de onde parei, eu estou copiando, e quando vejo, me perdi!

— Calma. — Pediu Leona alarmada. Ela nunca sabia como reagir às pequenas explosões do liberiano. — Eu dito pra você, assim você não se perde. O que acha?

Zeke não respondeu, porém apanhou o lápis de escrever e se prontificou.

— Ok... — Começou Leona. — Divisão... espaço... celular... espaço... é.... espaço... o... espaço... processo... espaço... pelo... espaço... qual... espaço... uma célula hífen mãe... espaço... origina... espaço... células hífen filhas....

Aquela devia ser a segunda vez que Leona ditava para Zeke, e desde já percebia que esse favor a agoniava. Zeke escrevia em velocidade de tartaruga, e se Leona não o alertasse sobre os espaços, ele continuaria fazendo as letras grudadas umas nas outras, formando uma centopeia infinita.

Nesse momento, Verônica, aparentemente findando o papo com o seu irmão, passou para a cadeira de Leona e se esticou para conseguir alcançar a carteira de Zeke.

Venha me pegarWhere stories live. Discover now