Como um serzinho tão pequeno, pode ter um pulmão tão forte?
Liam May, apesar de ter apenas algumas semanas, chora muito alto e faz questão de anunciar a todos que algo não lhe agrada. Não que eu esperasse paz e sossego quando ele finalmente viesse para casa, mas passar metade das noites acordada também não estava nos meus planos. E isso porque eu nem sou a mãe.
À duas noites atrás, estávamos os quatro acordados (Noah tem passado bastante tempo aqui em casa, já que eu não estou indo até a sua por conta do bebê) às três da madrugada enquanto Liam viajava de um colo para o outro chorando, brincadeira essa que durou mais de uma hora e só terminou quando ele adormeceu no colo da Sofya depois de descobrirmos que estava com cólica.
Tudo bem que, segundo o que a pediatra nos disse em sua chuva de recomendações e conselhos, é normal que o recém-nascido fique agitado durante os primeiros dias em casa e é o caos. Afinal, ele está se adaptando, e ainda tem as benditas cólicas e a fome que as vezes parece interminável.
Só que, lá no fundo, sei que metade desse dengo todo foi herdado da minha amiga.
O que mais eu poderia esperar do filho da Sofya, não é?!
Mas, num geral, Liam é um bebê tranquilo. Dorme a maior parte do dia (só não a noite, para a minha infelicidade na maioria das vezes) e nos arranca risadas sem qualquer esforço. Por incrível que pareça e eu jamais imaginei que sentiria isso, ele trouxe outra atmosfera para a casa. Não é à toa que somos quatro bobos ao redor dele.
Ele se tornou o rei.
– Você pode segurá-lo um pouquinho pra mim?
Sofya surge diante do balcão onde estou preparando os biscoitos, descabelada e com olheiras tão grandes que chegam a dar pena. Deixo os ingredientes de lado e tiro o avental, me limpando bem o suficiente para não irritar o bebê.
– Claro que sim. – respondo.
Ela põe o filho nos meus braços com extremo cuidado, acariciando sua cabecinha em seguida. Olha para mim e suspira, nitidamente cansada. Diz:
– Daqui a pouco os meninos voltam e eu nem tomei banho ainda.
– Não se preocupe. Vá tomar o seu banho e relaxar um pouco, que eu cuido do buzininha.
– Não chame o meu príncipe de buzininha. – ralha, e então se inclina para beijar o bebê e falar com aquela vozinha que só usa com ele – Você é o príncipe lindo da mamãe, não é?! É sim! O mais lindo! Não ligue para o que essa feia diz.
– Vai logo tomar o seu banho!
Minha amiga torce os lábios, mas faz o que digo, depois de enchê-lo de beijos.
Sofya é quase a mamãe ursa, e nem preciso dizer que o Bailey faz o par perfeito com ela. Claro que Liam, por ser tão novinho, necessita de muitos cuidados e atenção, mas está na cara que esses dois serão corujas até o filho ter 45 anos.
Caminho até o sofá e acomodo o pequeno no bebê conforto que lhe dei de presente, e pego um dos milhares de bichinhos de pelúcia que agora vivem espalhados por todos os cantos para distraí-lo enquanto a sua mãe tenta parecer um ser humano normal (ou perto disso), e volte para enchê-lo de mimos de novo.
Assim como adora abrir o berreiro, nossa buzininha, como o apelidei carinhosamente, se dá bem com todo mundo (todo mundo, nesse caso, significa os pais, Noah e eu) e também gosta de ficar quietinho as vezes, observando tudo ao redor, igualzinho ao pai.
É muito engraçadinho vê-lo franzir o narizinho como se estivesse tentando entender o que está acontecendo.
Vestido com um macacão verde, uma toquinha branca e luvinhas da mesma cor, Liam me observa de maneira um pouco desfocada com os seus olhinhos levemente rasgadinhos e eu me derreto. Mesmo sendo escandaloso e impedindo que a casa inteira durma na maioria das noites, o buzininha é o bebê mais lindo que eu já vi, com seus tufinhos de cabelo desgrenhados no topo da cabeça e bochechinhas gordinhas e rosadas.
– Está animado para a festa de Natal? – cutuco delicadamente sua barriguinha – Hoje vamos comemorar também que o titio Noah passou na audição. Sabia que ele vai ser um grande cantor? Você gosta quando ele canta para você?
O bebê faz um barulhinho e solta baba para todos os lados, mexendo as mãozinhas e fazendo-me soltar uma risada. Interpreto sua reação como um 'sim'.
Continuo brincando e conversando com o pequenino por mais alguns minutos, isso até a sua carinha começar a dar indícios de que vai chorar. De imediato confiro a sua fralda, mas está limpa. Como ele mamou não faz muito tempo, provavelmente esteja com sono. Por isso, antes que possa colocar a buzininha para funcionar, tiro-o do bebê conforto e o ajeito no colo.
Levanto e, de um lado para o outro, balanço em um leve ninar. Que parece fazê-lo muito feliz, uma vez que a sua carinha de choro desaparece no mesmo instante.
– Buzininha, você é muito pequeno para ser mimado desse jeito.
Apesar da "bronca", embalo-o nos braços com carinho, observando como fecha os olhinhos e instintivamente procura aconchego em mim. Aquela mesma sensação que tive durante o ultrassom da minha amiga e que vem dando as caras nos últimos dias me apossa outra vez. Olhar para Liam as vezes me faz imaginar como seria...
"Você está indo longe demais de novo, Any!"
Sacudo a cabeça, afastando os pensamentos.
Embora a minha aptidão para a música seja zero, cantarolo baixinho uma canção de ninar enquanto acaricio suavemente a sua mãozinha, e, de repente, o barulho da porta chama a minha atenção. Bem como Bailey e Noah entrando.
– Vocês chegaram. – sussurro.
Bailey sorri e vem direto para o meu lado, ao contrário de Noah, que continua parado e me encarando. Seus intensos olhos verdes cintilam com um sentimento que, ainda que eu não saiba distinguir, me acerta em cheio e com força. E sempre, sempre, faz o meu coração acelerar e o meu estômago dar uma cambalhota.
– Se quer tanto um, porque não vai logo fazer?
A voz de Sofya quebra a nossa bolha e nos traz de volta a realidade.
Vejo as bochechas do meu garoto tornarem-se vermelhas como tomates e, com um pigarro encabulado, ele agarra as sacolas e vai para a área da cozinha. Fuzilo a minha amiga no instante em que se aproxima para beijar o Bailey, mas, como sempre, ela deliberadamente ignora os meus olhares e finge que nada aconteceu.
– Você gosta de constranger os outros, né?! – resmungo.
– Só estou dizendo a verdade. – retruca, tirando o bebê dos meus braços e aninhando-o nos seus – Já notou como ele olha para você quando está segurando o Liam?
Espio-o por cima do ombro, remexendo nas sacolas e colocando as compras sobre o balcão, com o rosto ainda ruborizado. Olho de volta para a minha amiga e suspiro:
– Não diga besteiras.
Ela solta um muxoxo e senta com o bebê no sofá.
Sem querer dar trela para as suas asneiras, aproveito que estou livre novamente para terminar os biscoitos que ficaram esquecidos. Pego o avental largado na banqueta e me ponho ao lado de Noah no balcão. Ele continua organizando as compras enquanto eu recomeço a massa. Não falamos e, para a minha surpresa, uma tensão estranha se forma entre nós. A Sofya tinha que abrir a boca para falar o que não devia, né?!
Respiro fundo, batendo mentalmente na minha amiga. Despejo a farinha na tigela, pensando em um jeito de quebrar o gelo, mas nada me vem à cabeça além do óbvio:
– Não dê importância para o que ela diz. Lembre-se que a Soso não sabe a hora de ficar quieta.
Ele assente, porém, não responde. De repente, vira de costas e se apoia na borda do balcão, segurando-o com ambas as mãos, com mais força do que o normal. Nós nos observamos por um instante e me surpreendo ao perceber que suas bochechas enrubescem outra vez.
– Any.
– Sim?
– Você acha que... Nós.. – desvia os olhos e respira fundo, num gesto visivelmente envergonhado – Você acha que nós... No futuro, nós...
Esbugalho os olhos diante a pretensão de suas palavras e sinto o coração disparar dentro do peito. Ele... Ele... É sério?!
Oh, céus!!!
Sem conseguir acreditar, deixo as suas palavras flutuarem no ar e o silêncio recai outra vez. Eu deveria estar eufórica assim? Eufórica e um tanto assustada?
É normal sentir isso?
Noah, percebendo o tamanho do meu espanto, olha-me e cora até o último fio de cabelo. Antes que eu possa falar alguma coisa, ele dá as costas e foge para o corredor, de onde posso escutar a porta do banheiro abrir e fechar num estrondo.
Solto o ar que sequer notei estar prendendo e recosto no balcão, na mesma posição que ele estava a segundos atrás. Meu coração parece que vai sair pela boca.
Levo as mãos até as bochechas e elas só faltam queimar os meus dedos de tão quentes.
A Sofya tinha razão.
Ele quer. Noah também quer.
Eu estaria mentindo se dissesse que foi fácil encará-lo depois que saiu do banheiro. Sua expressão ainda paira em meus pensamentos, especialmente agora que o sentimento que tantas vezes encontrei refletido em seu olhar me faz sentindo. No entanto, esse é um assunto que, como ele mesmo disse, é algo para o futuro.
Há muito mais no caminho do que o nosso desejo. Assim como eu, acredito que ele também não queira pular etapas, e sim seguir aos poucos e no nosso ritmo. Ter consciência de que nós dois queremos isso para o futuro já é o primeiro passo.
Então, silenciosamente, concordarmos em "esquecer" o episódio embaraçoso que protagonizamos na cozinha.
Pelo menos, por enquanto.
Depois de prepararmos o jantar e o bebê estar no décimo sono, dando-nos algumas horas de descanso até que ele acorde e acione a sua buzininha, nós quatro nos damos ao luxo de sentar e relaxar bebendo um coquetel de frutas sem álcool que Bailey aprendeu a fazer com um dos rapazes do karaokê.
A árvore que montamos há uns dias atrás está iluminada (graças às luzes que Noah comprou depois de todo o acontecimento que foi o nascimento do bebê) e a mesa já posta, esperando que a nossa fome aperte para atacarmos.
Os biscoitos, que por milagre ficaram prontos, estão no pote decorado que a minha amiga comprou e guardou por meses só para o Natal. Há churros, o doce favorito da Sofya; além de outros pratos espanhóis, brasileiros e também ingleses. O nosso jantar é uma grande mistura de culturas.
– E então, Noah, quando você começa.. Ah... Como trainee? – Sofya pergunta.
– Em março. Um pouco depois da nossa formatura.
– Isso é bom, não é?! Pelo menos não ficará tão sobrecarregado.
– Não pense que ser um trainee é fácil, Sofya. – intercedo – Ele ainda terá que se empenhar muito nos ensaios e nas aulas para se tornar um músico.
– E como a senhorita sabe de tudo isso?
– Andei fazendo algumas pesquisas. – dou de ombros.
Noah sorri contra o meu pescoço, onde deixa um beijo, me arrepiando.
– E você, Bay, quando começa os preparativos para o vestibular? – pergunto, mudando de assunto.
– Na primeira semana de janeiro. Conversei com o meu pai e combinamos que, depois de ingressar na faculdade, vou frequentar as aulas padrões até escolher o curso que quero fazer. Assim que eu prestar o vestibular, vou deixar o trabalho no karaokê.
– Seu pai vai mesmo ajudar?
– Bom, ao que parece, sim. Mas tenho algumas reservas no banco. Qualquer imprevisto, eu peço a gerente para voltar. Ela disse que as portas estarão abertas.
– Depois da conversa que vocês tiveram e a ironia de ele ser o médico que fez o parto do Liam, duvido muito que vá faltar com o que prometeu.
– Eu também acho que não.
Papeamos sobre os nossos planos para o próximo ano à medida que vamos bebendo o coquetel de frutas; Sofya vira o que há em sua taça e estica os braços, se espreguiçando.
– O que acham de colocarmos uma musiquinha? – minha amiga sugere – Estou cansada dessas reprises de Saturday Night Live, sério. Vamos animar essa festa de Natal! Quer dizer, não tanto para que o nosso príncipe não acorde.
Eu, aninhada ao peito de Noah, reparo quando Bailey lança uma olhadela para ele e pisca. Meu garoto, dando o último gole na bebida, beija os meus cabelos e diz:
– Preparei uma coisa para vocês, mas preciso do violão para isso.
Fico agitada. Se ele precisa do violão, significa que vai cantar e eu simplesmente amo quando o faz. Mesmo a contragosto, permito que levante, pois a vontade de ouvir a sua linda voz é maior do que ficar agarradinha a si. Ele corre até o canto da sala e traz consigo o violão, sentando ao meu lado com o instrumento apoiado na perna.
– Não é nada demais, é só que... – olha-me e sorri – Como é o nosso primeiro Natal juntos, achei que seria legal fazer algo.
– Nós vamos adorar ouvir, com certeza. – digo, devolvendo o sorriso.
– Espero que sim, porque não tive muito tempo de ensaiar. - respira fundo e começa a dedilhar as cordas do violão - O nome da música é Christmas Day.
Nós três, seus espectadores, ficamos em silêncio para ouvi-lo atentamente. Sua potente e melodiosa voz preenche a sala, e faz todas as minhas terminações vibrarem.
"Esse ano vemos de novo a árvore de Natal
Eu que esperava, estou aqui para encontrar
Por todos os lados as ruas estão iluminadas
Para mim hoje, e amanhã também, é dia de Natal
A bela iluminação nos dá as boas vindas
A fragrância da flor em minha mão me preenche
Vejo novamente o seu lindo sorriso
E até agora eu estou agitado
Com você, querida, com você
Com você, querida, com você
Com você, um belo dia de Natal"
Suas duas esferas verdes movem-se até mim e sou arrebatada por elas, lindas e radiantes. Eu sorrio. Sorrio feito uma boba e mergulho em todas as sensações maravilhosas que o seu canto e o seu olhar me provocam.
Os movimentos dos seus dedos contra as cordas são elegantes e encantadores, assim como os dos seus lábios, e não me surpreenderia descobrir que cai em um feitiço.
Bom, acho que isso está bem claro desde sempre.
"Agora eu também penso nos seus olhos
Naquela hora, olhando para mim
Quero te dar um abraço secretamente
Para mim hoje, e amanhã também, é dia de Natal
Ainda sou infantil, não sei bem sobre o amor, mas
Sei sobre a sua grande beleza
Preenchendo o meu coração palpitante
Para mim hoje e, amanhã também, é dia de Natal
Com você, querida com você
Com você, querida com você
Com você, um belo dia de Natal"
Quando os acordes terminam e o último verso ressoa, explodimos em palmas e elogios para o meu coelhinho talentoso. Como de costume, todo sem graça, nos agradece. E não me contenho em enchê-lo de beijos e mais beijos.
– Amo ouvir você cantar! – sussurro em seu ouvido e aceito de bom grado a sua deliciosa língua dentro da minha boca, num beijo que me faz perder o ar.
Depois de me esbanjar o quanto quero com seus lábios, abraço-o.
– Adorei a música, apesar de achar que ela foi pensada mais pra um de nós, né?! – Sofya comenta, risonha, arrancando risadas nossas – Definitivamente, se o seu sonho não fosse ser cantor, nós o obrigaríamos a isso.
Balanço a cabeça, não posso deixar de concordar.
– Você nasceu para cantar, cara, de verdade. – Bailey se pronuncia.
Noah, pra variar, está igualzinho a uma pimenta.
Ele precisa aprender a receber elogios.
Perto das onze, decidimos comer. Nos reunimos na mesa e não há cerimônias, atacamos e enchemos os nossos pratos com tudo o que está diante nós. Claro que os garotos simplesmente se esbaldam como se não houvesse amanhã.
Entre conversas e risadas, desfrutamos do jantar que preparamos juntos e o rei da casa não demora a acionar a buzininha, anunciando que também quer participar da festa.
Sofya parece com Liam no colo após a mamada e senta ao lado de Bailey, que se desmancha de amores pelos dois; Noah e eu, abraçados, curtimos o momento e trocamos beijos. E eu não poderia pedir um Natal melhor do que esse!
Um Natal em família.
– Está na hora, pessoal. – anuncio ao olhar para o relógio.
Corro atrás das taças e Noah do champanhe.
No instante em que a contagem termina e finalmente é meia-noite, a garrafa é aberta e todos sorrimos, até mesmo o bebê, apesar de sabermos ser apenas um reflexo. Mas é como se ele também estivesse feliz com a nossa celebração.
– Vamos fazer um brinde. – Bailey propõe, erguendo a taça – Ao nosso primeiro Natal juntos, a aprovação do Noah e que todos os nossos desejos se realizem!
Erguemos as nossas taças e brindamos, bebendo em seguida, a Sofya arrisca um golinho só para não passar em branco; me livro o mais rápido possível da taça, apenas para me jogar nos braços de Noah e beijá-lo com todo o meu amor.
Com os lábios roçando contra os seus, sorrio e sussurro:
– Feliz Natal, coelhinho. E parabéns pela aprovação, mais uma vez.
– Feliz Natal. Eu amo você!
– Também amo você, minha futura estrela da música.