As minhas primeiras semanas com uma mulher desempregada foram bastante... Esquisitas?! Bem, não necessariamente isso. Na verdade, acho que está mais para diferentes.
Já fazia tantos anos desde que fiquei desempregada pela última vez, que foi inevitável não estranhar o fato de eu estar desocupada todos os dias. Bom, quase desocupada. Uma vez que tenho ajudado a Sofya, que está "sofrendo" devido aos pés inchados e a barriga enorme de oito meses, e feito praticamente todas as tarefas de casa sozinha.
Bailey anda trabalhando muito, sem contar que passa a maior parte das folgas entre estudar e acompanhar a minha amiga nas consultas e mimá-la juntamente com o bebê. Não é à toa que, vez ou outra, Noah comente que ele tem cochilado nas aulas. Pobre garoto. Logo, nada mais justo do que eu ajudar no máximo que puder.
Apesar de o excesso de tempo livre me deixar louca a maior parte das vezes, também me deu a chance de pensar e repensar sobre muitas coisas. Uma delas, por exemplo, é o meu relacionamento com Noah. Como imaginei, ele ficou - mais uma vez - sentindo-se culpado pelo o que aconteceu e por eu ter perdido o emprego.
Mas, veja bem, não era como se pudéssemos esperar um outro desfecho para aquela situação. Sabíamos dos riscos. Portanto, uma vez que houve a oportunidade de salvar um de nós, em um momento em que tudo indicava que os dois perderiam, não pestanejei em escolher quem seria salvo.
Eu já me formei e realizei muito do que sonhei. Nada mais justo do que ele ter a mesma chance. O sentimento de culpa, bem, terá que lidar com isso. Assim como Bailey precisa aprender a lidar com a grande cobrança que faz sobre si mesmo, Noah precisa aprender que nem tudo é responsabilidade sua.
Agora que não sou mais a sua professora e o nosso segredo foi revelado para quem quiser saber dentro daquele colégio (os rumores, sem demora, transformaram-se em verdades. Tenho quase certeza que há dedo da Scarlett ou até mesmo da senhora Yule nisso, mas não faz diferença), mais um assunto ressurgiu entre nós: Noah quer dar o próximo passo: morarmos juntos.
Já tínhamos conversado sobre essa possibilidade e admito que estou cada vez mais tentada com a ideia de dividir uma casa com ele. Porém, acho que ainda não é o momento. Embora eu não esteja mais no colégio, apressar as coisas só daria mais margem para que continuassem comentando de nós dois. E, mesmo que não queira transparecer, sei que ele odeia que fiquem falando a respeito do que não sabem.
Por fim, depois de pensar e repensar, decidimos esperar a formatura passar. Até porque, com a Sofya tão próximo de dar a luz e Bailey atarefado do jeito que está, alguém terá que ajudar a mamãe de primeira viagem e eu não vou deixar a minha amiga na mão de jeito nenhum. Eu o amo, mas amo ainda mais a Sofya.
Bom, ele me compreende. E é isso o que importa.
Contudo e por incrível que pareça, o que realmente tomou os meus pensamentos por esses dias não foi a relação com o meu antigo aluno e sim a minha profissão.
Estamos no meio de dezembro, as festas de final de ano estão chegando e faltam pouco mais de dois meses para o ano letivo terminar. Então, desde que pedi demissão, não sai correndo a procura de um novo lugar para lecionar.
A minha situação bancária não é das piores. Talvez eu possa levar por mais três ou quatro meses antes de entrar em desespero. Eu amo estar em uma sala de aula, ensinar e também toda a rotina dentro de um colégio. Não é à toa que passei tantos anos como professora.
Porém, com 28 anos e uma "nova chance" de reconsiderar alguns aspectos da minha vida, quem sabe não esteja na hora de eu cogitar sobre novos começos.
Com o Natal se aproximando, as ruas e as lojas estão cada vez mais enfeitadas, e a minha amiga e eu, como de praxe, também vamos decorar a nossa casa. Fazemos isso todos os anos, desde que morávamos na Espanha.
Porém, como agora temos (praticamente) mais dois moradores e um terceiro a caminho, resolvemos comprar novos enfeites e uma árvore maior, para comemorar as grandes reviravoltas que ocorreram ao longo desse ano. Ah, e para acomodar todos os presentes que também pretendemos comprar. Será a primeira vez em três anos que passaremos o natal na companhia de outras pessoas.
No caso, as pessoas mais importantes para nós duas.
Estaciono o carro em uma das ruas paralelas de Shepherd's Bush e, de longe, posso notar que a movimentação está grande. O que, diga-se de passagem, não é o melhor cenário para uma mulher grávida que, dia sim e dia não, fica com os pés inchados.
Olho para a minha amiga sentada no banco do passageiro e pergunto:
– Você tem certeza, Soso?
– Claro que tenho. Quantas vezes mais você vai perguntar isso hoje? – revira os olhos, ajeitando o casaco grosso azul – Eu estou grávida e não doente. Que saco! Você e o Bailey estão me tirando a paciência. Até o Noah está começando a ficar chato.
– Só estamos preocupados com você, sua má agradecida de merda. – rebato – Você vive com os pés inchados ultimamente e com dor nas costas por causa da barriga.
– Eu sei, 'tá?! Mas a médica disse que posso reduzir o inchaço com caminhadas e já estou cansada de ficar só dentro de casa. Preciso andaaaaaaaaar!!
Respiro fundo, dando-me por vencida. De alguma forma, eu a entendo. Ficar em casa é realmente entediante as vezes. Para ela, deve ser ainda pior.
– Tudo bem. – rendo-me – Mas se eu reparar que está ficando cansada...
– Não vamos demorar taaaanto assim. Se visitarmos três ou quatro lojas, será muito.
Mesmo desconfiando de suas palavras, desço do carro para ajudá-la a sair.
Caminhando por Myeongdong atrás dos enfeites, Sofya e eu conversamos sobre o que fazer para a festa de Natal. Aqui em Londres, ao contrário do Brasil que é um momento para reunir a família, o Natal é um feriado para casais. Portanto, precisa ser algo bastante romântico, segundo a minha amiga.
– Você poderia fazer aqueles biscoitos. O que acha? – ela sugere – Os garotos vão gostar, tenho certeza.
– Os amanteigados? Hum... Pode ser.
– Adoro aqueles biscoitos! Pena que você é uma pessoa ruim e só faz no Natal.
– Que mentirosa. Eu não faço apenas no Natal. Já comemos em outros feriados.
– Ah, ok. No Natal e nos outros feriados. Qual é a graça?
– Se eu fizesse todas as vezes que a senhorita tem vontade, daí sim perderia a graça.
– Como se você fosse a super protetora das tradições, né?!
– Não, sou apenas preguiçosa para cozinhar mesmo. – dou risada.
– Se eu tivesse desejo pelos os seus biscoitos, você não fizesse e o meu bebê nascesse com cara de biscoito, teríamos problemas.
– Vamos agradecer que você não teve, então. Se bem que pagariam uma fortuna para ver um bebê com cara tipo de Trakinas. Seria um bom negócio, no final das contas.
Sofya também ri e bate com a sacola na minha barriga.
– Hoje eu já disse que te odeio?!
– Acho que não.
– Pois, eu te odeio.
– Geralmente é recíproco.
– O único bebê que vai nascer com cara de biscoito é seu futuro filho com o...
De repente, ela para e leva a mão as costas, perto da base da coluna, fazendo uma careta de dor. Fico em alerta. Apesar de estarmos andando a pouco mais de uma hora, sei que é um esforço muito grande para a minha amiga grávida.
Me ponho ao seu lado, um tanto apreensiva.
– Soso, o que foi?
– Nada. É só aquela dor na parte debaixo das costas de novo. – respira fundo uma e outra vez, tentando diminuir o desconforto – Eu estou bem.
– É melhor nós pararmos para descansar. Talvez a dor seja porque estamos andando demais.
– Mas ainda temos que ir atrás das luzinhas.
– Compramos quase tudo, Sofya, podemos deixar as luzinhas para depois ou pedir que um dos meninos venha buscar. O importante agora é você sentar um pouco.
– Tudo bem. Acho que você tem razão. – respira fundo de novo – Estou com fome. Podemos parar em algum McDonalds? 'Tô a fim de comer um hambúrguer.
– Tudo bem. Tem um aqui por perto e podemos parar lá. Mas acho que deveria comer algo mais leve, tipo aquele wrap de frango.
Ela parece pensar e, enfim, concorda.
– A dor passou?
– Sim, sim.
– Então vamos.
Dou o braço para a minha amiga e caminhamos devagar em direção ao McDonalds no quarteirão seguinte; assim que entramos no lugar, peço para que ela sente em alguma das mesas vagas enquanto vou realizar os nossos pedidos no caixa.
Peço dois wrap de frango, uma Coca-Cola para mim e um suco de laranja para ela. Sofya, sentada próximo ao balcão, estica a mão e acena ao me ver. Ponho os lanches sobre a mesa, contudo, a sua expressão inquieta é o que me chama a atenção.
– Está doendo de novo? – indago, mais preocupada do que antes.
– Você sabe que ando com essas dores já faz alguns dias.
– Só que não com tanta frequência quanto está sendo hoje, Sofya.
– Eu estou bem. Sério.
Observo-a com as sobrancelhas franzidas, buscando qualquer resquício de mentira em seu rosto. Ela sorri e pega o embrulho do wrap, e nem hesita em começar a comer.
Como de costume, devoramos os nossos lanches à medida que tagarelamos sem parar. Ainda que eu esteja agindo normalmente, fico de olho à algum sinal de que a minha amiga voltou a sentir dor. Eu sabia que não deveríamos ter andado tanto.
– Vou a banheiro. – Sofya fala, levantando-se.
– Quer que eu acompanhe?
– Vai me limpar também? – ela ergue uma sobrancelha, irônica.
– Estou mais para esfregar esses guardanapos sujos na sua cara.
– Eu já disse que estou bem, Any. Posso ir ao banheiro sozinha.
Ergo as mãos em rendição e faço um gesto para que vá logo fazer o que precisa fazer.
Sozinha na mesa, pego o celular para verificar se o Noah ou o Bailey enviaram mensagens. Porém, não há notificações. Como hoje é sábado, os dois entraram mais cedo no karaokê, já que é o dia de mais movimento. Provavelmente chegarão tarde.
Bebo o restante do refrigerante e observo ao redor. Alguns minutos se passam e nada da Sofya voltar para a mesa. Certo que, por estar grávida, ela está mais lenta do que o normal. No entanto, essa demora toda está muito estranha.
Junto as sacolas embaixo da mesa para ir atrás da minha amiga no banheiro. No entanto, tomo um susto quando uma funcionária surge no salão e grita, aflita:
– Any? Quem é a Any, por favor!!
Meu coração dispara no peito. Levanto de supetão, sem dar importância para nada, e corro na direção da mulher de cabelos escuros, que me olha com angustia.
– O que aconteceu? – pergunto, tão angustiada quanto.
– E-eu não sei... Mas uma moça pediu para chamar você.
Balanço a cabeça feito uma pateta e a sigo até o banheiro feminino. Uma vez que avisto a porta, passo à frente e a escancaro sem dó nem piedade. Ouço uma respiração rápida e chorosa vinda de uma das divisórias, a penúltima, e me apresso para abri-la.
Quando o faço, deparo com a minha amiga coberta de suor e ofegante, sentada na privada e se contorcendo de dor. Seus olhos cheios de lágrimas me fitam com desespero e sou atingida pelo mesmo sentimento em um segundo.
– Soso? O que aconteceu?
– A bolsa estourou!
– O QUE?? – grito, bombardeada pelo choque.
– A BOLSA ESTOUROU, DROGA!
Com os olhos arregalados, observo a poça ao redor de seus pés e quase caio para trás tamanho é o meu baque. Ai, meu Deus!! Isso não pode estar acontecendo!!
Minha amiga está dando à luz dentro do banheiro de um McDonalds. Sério?!
– AI CARALHO, EU NÃO ACREDITO!! – solto em português.
Entorpecida com a situação pra lá de inusitada e sem a mais vaga ideia do que fazer, giro igual a uma barata tonta ao redor de mim mesma, e sobressalto com o grito que a minha amiga solta e me traz de volta à tona.
Ok, é pra valer.
– Por favor, chame uma ambulância. E rápido! – instruo a funcionária, que concorda e sai correndo banheiro a fora - Sofya, fique calma. Logo iremos para o hospital.
Pego todas as folhas de papel que sou capaz do suporte ao lado da pia e me agacho diante ela para limpar o seu suor, que brota abundante de sua testa.
– Você lembra dos exercícios de respiração que a médica passou? – pergunto e ela balança a cabeça, num mais ou menos – Tente fazer. Devagar.
– Como era mesmo...? Ai, merda! Era... Era... Ah! Inspira pelo nariz e solta o ar pela boca. Inspira contando 1, 2, 3 e expira contando 1, 2, 3, 4.
Acompanho-a no tal exercício, contanto as vezes que deve inspirar e então expirar. A funcionária surge outra vez, dizendo que já chamou a ambulância e estão a caminho. Pergunta se tem algo que possa fazer para ajudar e eu só peço que cuide de nossas coisas que ficaram jogadas lá na mesa. Do resto, eu cuido.
– Eu preciso avisar o Bailey! – num relampejo, lembro que o pai sequer imagina que o bebê está prestes a nascer e menos ainda dentro do banheiro de um McDonalds.
E é também nesse momento que lembro estar com a porcaria do celular no bolso da calça jeans. Por que raios EU não liguei para a ambulância?
Agarro o aparelho com a mão trêmula, enquanto seguro o papel contra a testa de Sofya e a incentivo a continuar o exercício. Procuro o número do garoto do jeito que posso usando apenas uma mão, e quase deixo o aparelho cair no instante em que vibra entre os meus dedos. É uma ligação do Noah.
Ótimo! Na hora certa!
Praticamente me dobro ao meio para atendê-lo e o que escuto é a sua respiração agitada, além do barulho do karaokê de fundo.
– Ainda bem que você ligou. Eu...
"Meu amor! Meu amor!"
– Noah?!
"Eu passei!!"
– O que?
"Eu consegui. Eu passei na audição!"
Mais uma vez sou surpreendida. Meu coração bombeia ainda mais depressa.
– Oh, céus! Sério? É sério, Noah?
"Sim. Acabei de receber a resposta."
Entre a felicidade e o desespero, tenho vontade de chorar de emoção.
Vontade essa que é completamente aniquilada pelo grito da Sofya:
– FALA LOGO COM O BAILEY, MERDA!!
"Isso foi a Sofya gritando?" – ele pergunta, com espanto na voz – "O que está acontecendo?"
– Noah, por favor. Avise ao Bailey que ele está prestes a ser papai.