A imagem da mulher que teve como heroína no futebol por anos, por ser o ideal que nunca alcançaria, por viver o sonho que nunca viveria, surge pela sua visão periférica. Catra tenta ignorar o quanto pode.
- Que bom que está animada – Catra não responde. Sente que se falar, perderá o fôlego. Marta coloca um dos dedos sobre o painel da esteira e diminui a velocidade – mas oshe menina, assim cê vai se lesionar.

Catra põe o dedo sobre o painel novamente, pronta para tornar a aumentar a velocidade, mas reflete sobre as palavras da outra. Se lesionar de novo não parece uma boa opção. Teve sua primeira lesão da carreira há poucas semanas e não quer voltar àquela situação tão cedo. Engolindo o orgulho, ela tira o dedo do painel sem mexer na velocidade. Ela sente o olhar da estrela sobre ela.
- Como cê tá se sentindo?
- Tô de boa – Catra sente a garganta doer. Consegue ouvir sua eu de 16 anos gritando desesperada em seu ouvido pra pedir uma foto e conversar direito, e pelo amor de deus não chorar nem ficar gritando agudo e nem agir estranho. Já está falhando na parte de agir estranho, mas pelo menos pensa que já superou aquela fase onde teria surtado na frente dos seus ídolos.

Não é só pelo excesso de exercício que sua garganta dói.
- A gente sempre tenta fazer as jogadoras novas se sentirem confortáveis aqui nesse ambiente, sabe? – a outra diz – e cê num parece muito confortável aqui não.

Sentindo as pernas cansando, Catra diminui a velocidade mais um pouco, pensando em fazer algum dos exercícios de braços e costas em seguida e dar um descanso às pernas antes de voltar à esteira. Sua mente tenta evitar pensar naquilo. A situação mais cedo com Camila já fora desconfortável o suficiente. Logo ela diminuiu a velocidade para uma caminhada rápida.
- Eu e as outras meninas vamos dar uma saída agora. Se quiser ir com a gente e contar o que anda se passando nessa sua cabecinha... – o tom dela é brincalhão.
- Fazer o quê?
- Dar um rolê por aí pela cidade, relaxar, tocar violão.
- Cêis trouxeram um violão é?
- Trouxemo, ué.
- Vem cá, a Renatão vai?
- Vai, sim!
- Então nem fudendo que eu vou falar nada lá. Ela ia me zuá pro resto da vida – o comentário arranca risadas de Marta. Catra sorri de lado, surpresa por ter feito a outra rir, desliga a esteira e desce do aparelho, refletindo se ainda deve continuar suas sequências extras. Tenta não parecer ofegante demais.
- Então, você vem? – Catra pega sua garrafa de água pela metade ao lado da esteira e molha o rosto e o pescoço, se deixando respirar por um momento, antes de responder.
- Vou, né.
- Show! A gente te espera tomar uma ducha – quando ela se vira para sair, Catra a segura pelo pulso. A veterana e a novata se encaram em silêncio por um momento.

Catra se lembra da primeira partida de futebol feminino que viu na vida: foi a Copa do Mundo de 2007, quando tinha apenas 6 anos. Uma goleada do Brasil sobre os Estados Unidos por 4 a 0 nas semifinais, com dois gols de Marta, então uma novata de 21 anos. Havia visto o jogo pela Band. Perceber que se lembra até desse detalhe aquece o seu coração. Nunca vai se esquecer do segundo gol de Marta naquela partida, em que ela deu algum tipo de meia-lua aérea na primeira marcadora, tirou da segunda e chutou com o pé ruim. Por muitos anos, ela não tinha noção do quanto aquilo era importante. Encarava aquele ano, aquele momento, aquele lance, como apenas mais uma grande jogada da longa história de grandes jogadas da história do futebol.
- Eu não sei como lidar com isso – ela admite finalmente, e sente vergonha de si mesma por aquelas palavras, por aquele sentimento. Marta sorri de maneira compreensiva, e Catra continua – eu só quero jogar o meu jogo como sempre fiz, mas me disseram que é para eu substituir você. Eu... – Catra trava, sem conseguir terminar a frase. "Não estou à altura", completa em pensamento.
- Todas vocês da geração mais nova vão nos substituir. Nós não vamos durar pra sempre, e precisamos que vocês continuem o nosso legado.

Catra já sabe disso. Ouviu o discurso da rainha na Copa do Mundo no ano anterior. "Não vai ter uma Marta pra sempre, não vai ter uma Cristiane pra sempre, não vai ter uma Formiga pra sempre".
- Eu quero jogar do meu jeito, sem pressão. Ser livre. Saca?
- Pressão sempre vai haver. A gente tem que aprender a lidar.

Gringa Grudenta - (Catradora)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora