Caixa Preta

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Há alguns anos, da última vez que isso havia me acontecido, todos do hospital falaram que era o choque. Minha mente e meu corpo infantis não haviam sido capazes de associarem todos os horrores das horas que se antecederam, o que fez eles entrarem em guerra. Nunca entendi como nenhum deles havia visto a mancha negra em meu corpo tomando forma, mas talvez não seja algo que alguém sem magia pudesse ver. De qualquer forma, eu adoraria saber qual seria a explicação que dariam agora.

Minha mente, como fazia a maioria das vezes, lutou para não se desligar por completo. Permaneci ainda ouvindo e sentindo, mesmo que incapaz de ver ou mexer. Fiquei curiosa, admito, sobre como Severo lidaria com a situação. Me levaria nos braços até a ala hospitalar, no quarto andar do castelo? Ele não era curandeiro, mas devia conhecer uma poção ou outra que poderia me reanimar – arriscaria? Duvidei, era mais provável que chamasse alguém. Pomfrey ou Dumbledore? Pensaria primeiro em meu bem-estar ou em me colocar sob os olhos muito claros do diretor, prontos para me estudar? Mas, no final, não era algo que eu ficaria sabendo tão cedo.

Era muito escuro onde eu estava. E frio. E desagradável. Naquele ponto, tão fundo em mim, não havia muita coisa solida para me agarrar. Era apenas o que eu sentia – e a sensação era de estar com minha pele sendo virada do avesso por dedos de gelo. Não sentia Lagrum ali, nem Snape e nem a mim mesma. Algo como uma sala escura, mas sem paredes nem teto, onde não há nada para se ver e ao mesmo tempo cada centímetro é como a tela de um cinema, constantemente passando um filme horroroso. De novo e de novo, demorando a se repetir. Isso era culpa minha, gravei cenas demais.

Eu vi os Lewis e o medo em seus olhos. Agatha e William não deviam ter medo de mim, deviam me amar. Era para isso que me pegaram no orfanato, foi para isso que me deram um nome e me colocaram dentro de sua casa – para ser sua filha. Ao invés disso, lhes dei um pesadelo. O que eu teria feito de errado? Não me lembrava de nada, com novas lembranças ou não, além de ser aquilo que era: uma bruxa. Meus pais adotivos eram trouxas apavorados com a ideia de magia e, possivelmente, não havia muita coisa a ser feita para mudar isso. Seja como for, não tive a chance.

Greta também estava lá. Imortalizada por mim mesmo que seus ossos já não existissem. E havia muita carga atrelada a ela. Seu rosto como na primeira vez que vi: o sorriso que cortava e os olhos que caçavam. Sua mão firme, a força impiedosa em cima de quem não era capaz de se proteger decentemente. Se eu não fosse tão nova, se não houvesse algo em Lagrum que o mantinha até certo ponto obediente a mim... demorei demais para tomar uma atitude. Para fazer algo além de irritá-la. Mas com nove anos a decisão não veio fácil e apenas no último momento, então não havia mais volta. Nem para Greta, nem para mim.

Tantos rostos, tantos momentos dançando na superfície. Crystal rolando da escada. O livro de História da Magia acertando o rosto de Draco. Os olhos de Potter depois que lhe bati, surpresos e feridos. Não na carne, mais profundo que isso. O que o Garoto de Ouro diria se soubesse que o momento se marcou em mim também? Mais um rasgo na abertura que meu Monstro tinha, mais um pouco de espaço para que ficasse confortável a medida que era alimentado. Estava crescendo. Dentro e fora, o maldito. 

E a culpa era minha.

Não deixe ele te cegar, filhote. Não deixe que te engane. Você sabe bem o que aconteceu. Os Lewis discutiam, gritavam um com o outro. Não era a cena que nenhuma criança devia ver, mesmo que acostumada a isso. Greta era uma atrocidade e sua morte não deve ser lamentava sob nenhuma hipótese. Mas sabe disso, você se lembra. Não escute as sombras, Mal, elas nunca tem nada de bom para dizer – nem de muito honesto.

Era Lagrum. Rodeando a escuridão, buscando um caminho até mim. Ele era real, era físico e era presente. Todo o resto já havia passado e não havia nada que eu pudesse fazer. Mas meu amigo ali, forçando a barreira daquele lugar hediondo dentro de mim, fazendo o que sempre fez de melhor: me dando a chance de lutar. Toda minha vida ele havia me treinado para que eu pudesse ter alguma chance em seja qual for a ocasião. Resistência, rapidez, reflexos, agilidade, foco e disciplina – e eu precisava usar ao menos algum deles agora, precisava tentar. Por mais que quisesse, eu e ele sabíamos que nunca poderia derrotar meu monstro por mim. Essa batalha era minha.

Corona IIOnde histórias criam vida. Descubra agora