Tempo Perdido

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Fomos servidos pelo velho Tom quando chegamos no Caldeirão Furado para o almoço. Ele achou muita graça a "lista" que me deu e recebeu de volta a bolsinha de dinheiro com uma confusão legitima no olhar. Percebi que o homem não esperava que ela voltasse intacta – não por maldade, e sim por achar que eu merecia algum mimo depois de ser "enganada". Mas ele mesmo o providenciou quando serviu uma refeição completa para meu professor e eu, dizendo ser por conta da casa. O desconforto que senti em receber algo de graça não me impediu de comer (Daisy era mesmo boa), mas decidi que iria paga-lo de alguma forma em algum momento.

— Agradeço imensamente que tenha esperado a comida acabar — comecei depois de empurrar o prato para longe de mim. Snape também já tinha terminado e tomava goles pequenos de sua bebida enquanto me observava. — Mas vamos logo com isso. Davies?

— Três costelas quebradas, um ombro deslocado e uma clavícula trincada — pousou o copo na mesa, os olhos estreitos. — Mas viva. A recuperação, como qualquer trouxa, vai ser longa e dolorosa, mas completa.

— Katherine?

— A freira, apesar dos claros sinais de que era melhor assim, não gostou nada de saber do seu desaparecimento. Estava quase chamando a policia quando cheguei para dar parte em você. Consegui a tranquilizar e entramos em um acordo que você passaria o restante de suas férias sob a responsabilidade da escola, mas voltaria...

Não — minha garganta fechou, meus lábios apertaram. Realmente ótimo que já tivesse comido, duvidava que alguma coisa passasse agora. Na verdade, estava quase fazendo o caminho oposto. — Não pode fazer isso comigo. Não vou voltar para aquele lugar, Severo, nem que tenha que queimar tijolo por tijolo para não ter para onde voltar.

Snape ficou em silêncio, os olhos faiscando e a boca apertada. Ele sabia que eu falava sério. Podia não chegar a queimar todo o Santa Maria até virar fumaça, mas eu faria alguma coisa. Não me enfiariam lá outra vez, não suportaria mais nenhum dia confinada ao mundo trouxa mais do que já tinha sido condenada. Ao mesmo tempo, eu e ele sabíamos que não havia nenhuma outra boa resposta. Você é uma órfã, Greta repetia com frequência para mim, sabe o que significa? Que não existe ninguém no mundo que se importe com você, que lute por você, que queira você. A maldita frase me perseguiu na escuridão da minha inconsciência quando dormi e voltava agora, amarga pela verdade.

Eu sempre tinha Lagrum, mas Lagrum era uma cobra. Me lembrei de Harry Potter – órfão, assim como eu, mas apenas de pais. Ele tinha os tios, por mais miserável que fosse. Eu não tinha ninguém. O orfanato era meu lugar: um depósito de rejeitados, de crianças sem nome e sem rosto. A maioria sequer tinha um passado, todos não tinham qualquer futuro. Com doze anos e nenhum tostão, eu não podia abusar da boa vontade de Tom e Daisy para sempre e nem queria. Me convenci de que pensaria em algo depois. Mas hoje já era o depois de ontem e ainda estava ali. 

Bem no fundo, um sentimento de veneno ameaçava me fazer explodir. Fazia minhas cicatrizes doerem, fazia a ponta do mundo ficar rubra. Órfã, será? A trouxinha estava lá em cima, bem guardada no fundo do meu malão, dentro de minha mochila. Lá estava a única coisa que poderia me levar a origem de meu sangue bruxo, e o que teria na outra ponta? Me recusava a aceitar qualquer imagem de uma família reunida em volta de uma mesa em uma grande casa – não, não com a minha sorte. Minha lembrança voltou rápido, rasgando minhas próprias barreiras, exigindo atenção. A pequena Malorie com desenhos em volta dela e o sinistro prédio triangular à sua frente – Azkaban.

— Não é um acordo perfeito — a voz de Severo me trouxe de volta para o momento, tomando a força minha concentração. Agradeci por isso. Preferia sua cara desagradável do que minha própria consciência. — Mas é o único que existe. Devia ficar agradecida por não estar sendo levada agora mesmo de volta para lá, o que seria o certo a se fazer.

Corona IIDonde viven las historias. Descúbrelo ahora