{7} A SEGUNDA CAMADA

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Sub-dimensão, Mundo Não Físico

   
    O túnel levou Kraj para o centro de um planalto cercado por cadeias de montanhas altas, rochosas e obscuras. Ele não soube dizer se era dia ou noite, ou se sequer havia sol ali.

    Nuvens altas trovejavam constantemente e tinham a mesma cor do chão arenoso em que pisava: um cinza opaco e sem vida. Estava em na segunda camada do Mundo Não Físico. Ali ele tinha que se esforçar mais para manter-se protegido por sua aura, a pressão física aumentava a medida que ele ia mais fundo. Mas, ele estava tranquilo, seu poder era grande o suficiente para salvaguardá-lo por muito tempo.

    Caminhou pelo planalto entre rochas disformes, que mais pareciam rostos em lamentação eterna. A areia podia ser facilmente confundida com cinzas, manchando seus sapatos. O ar era pesado e ferroso e vez ou outra o yomei ouvia berros feéricos vindo de muito longe, do topo das montanhas e das cavernas próximo delas. Kraj sabia que não era o único ali, criaturas raivosas e famintas rastejavam por aqueles túneis e não hesitariam em atacá-lo. Ali seu poder era um atrativo às feras.

    Tudo isso, entretanto, não abalou a confiança do Mestre das Trevas. Nada, nem ninguém, o impediria de cumprir seu objetivo. Além do mais, deixaria para se preocupar com os habitantes do mundo dos espíritos nas próximas camadas, onde seriam bem mais hostis.

    Kraj andou pelo que lhe pareceram horas, não tinha certeza já que nada ali mudava. Não havia sol ou lua e o tempo era sempre congelado naquela atmosfera pesada. Chegou, em fim, ao pé de uma montanha pontuda, com o pico que se perdia nas nuvens raivosas acima. Se quisesse encontrar o próximo túnel que o levaria ainda mais fundo no Mundo Não Físico, teria que se embrenhar nas cavernas.

    Deixou para trás a pouca luz que escapava dos trovões e mergulhou na escuridão total da gruta. O breu que o envolvia não era um obstáculo ao seu avanço, sua visão espectral se adaptou facilmente a ausência de luz – uma habilidade nata para qualquer portador da aura negra.

    Não precisou andar muito para ouvir grunhidos e garras raspando a rocha úmida. Sua espada Mahiban balançava graciosamente em sua cintura a medida que andava. Não precisaria dela por enquanto. Podia sentir a aura das criaturas que se escondiam ali e não eram grande coisa. Não chegava se quer a ser um desafio.

    Kraj alcançou as profundezas da caverna, com galerias mais largas e altas, como se a montanha que a abrigava não fosse suficientemente grande para aquilo tudo. Estalagmites com mais de quatro metros de altura, e tão grossas quanto troncos de árvores centenárias, se erguiam do chão, apontando para o teto, onde suas semelhantes, as estalactites, apontavam de volta. Era como estar caminhando na boca de monstro de pedra, e aquele fossem seus dentes afiados.

    As criaturas que Kraj havia ouvido, logo deram as caras, esgueirando entre os cantos, espiando atrás das colunas. Eram pequenas, magricelas e de cabeça calva. A pele cinza como todo aquele mundo, tinha feridas que nunca saravam, olhos amarelos e esbugalhados espiavam o estranho em vestes luxuosas que passeava por seu lar como um rei.

    Kraj não deu a menor importância àqueles seres inferiores e continuou seu caminho. Sendo totalmente ignorados, o grupo composto por centenas de criaturinhas famintas, foi tomando coragem para chegar cada vez mais perto, raspando as unhas compridas e afiadas nas rocha.

    São como macacos. Kraj pensou. Curiosos e oportunistas.

    Ele deixou que os "macacos" ganhassem confiança para se aproximarem mais, fingia que não era capaz de vê-los na penumbra. Até que um deles chegou ao ponto de tocar a barra da calça do yomei. Como nada aconteceu, o ser mostrou os dentes podres e curvou-se para morder o descuidado visitante. Foi a última coisa que tentou fazer.

    Kraj apenas elevou sua aura um pouco, muito menos do que o necessário para se tornar um esforço. A mão da criatura queimou com a fumaça negra que cobria a pele do visitante. Pele, carne e ossos, tudo virou pó quando sua energia vital foi drenada. O ser berrou e guinchou antes de seu corpo completamente consumido. Não sobrou nada além que um montículo de poeira no chão.

    Os outros monstrinhos se afastaram quando viram o que acontecera com seu semelhante. Voltaram para seus esconderijos nas sombras, mas continuaram a espiar o estranho, tão poderoso que podia reduzi-los a pó sem nem mesmo levantar um dedo.

    — Ouçam, criaturas ridículas – Kraj pronunciou-se erguendo os braços. – Não me tomem como um ser comum que vagueia sem rumo por seu mundo. Me comparar a lixos como vocês, condenados à essa eterna prisão, é o maior erro que podem cometer. Afastem-se do meu caminho se não quiserem ser consumidos.

    Não foi preciso um segundo aviso. Os anões monstruosos logo desapareceram em buracos no chão e nas paredes da caverna. Logo sobrou apenas o barulho cada vez mais distante do grupo voltando a se enterrar no subterrâneo.

    Entretanto, Kraj esquecera-se naquele momento que existiam seres bem menos sensatos naquele plano, e bem mais agressivos, que não seriam intimidados pelo ser poder ou por suas palavras, pelo contrário, uma aura tão grande os atraia. Ele sentiu o solo sob seus pés vibrar com impactos ritmados e constantes, como se uma grande manada de búfalos corria desesperada em sua direção.

    Kraj virou-se a tempo de ver uma besta duas vezes maior que um cavalo trotando ensandecida ao seu encontro. Esbarrava nas estalagmites sem se importar se poderia ser ferida, o que não acontecia já que a criatura não parava.

    Nem mesmo ele tinha visto tal aberração, uma criatura de cabeça achatada e chifres pontudos no que seria seu focinho triangular. As patas com unhas curvadas, eram como dentes, que mordiam a pedra nua para impulsioná-lo para frente. Dentes também não lhe falavam na boca, fileiras e mais fileiras de caninos pontiagudos e úmidos de saliva. Quando a criatura estava a cinco metros de seu alvo, saltou sobre as rochas em seu caminho, com a bocarra aberta para arrancar a cabeça de Kraj.

    Mais uma vez ele manteve-se calmo e esperou o momento certo para agir. Ergueu o braço com o mostro a pouco centímetros de seu rosto passivo e agarrou a garganta da fera entre seus dedos. Não esforçou-se para prendê-lo contra o chão, com as patas para o ar, como um cão atrapalhado.

    — Sua fúria não o torna invulnerável, besta – falou Kraj entredentes, mesmo sabendo que não seria entendido.

    A fera se debatia e rugia, tentando escapar da pegada. Era inútil, criatura nenhuma atacaria o Mestre das Sombras e sairia impune. Kraj não sugaria sua energia como fizera com o anão, faria pior com aquele. Sem afrouxar a pressão, ele desembainhou Mahiban com a mão livre. A espada prateada zuniu, cortando a escuridão da caverna.

    A fera parecia saber que seu fim se aproximava e, em um último esforço para se livrar, batia os dentes no ar, a procura de algo para dilacerar. A ridícula tentativa terminou quando a lâmina mágica transpassou sua traqueia de lado a outro. Sangue negro esguichou nas rochas próximas quando a cabeça foi separada do corpo, a expressão de raiva congelada eternamente na face da criatura.

    Com um olhar de desprezo, Kraj sacudiu a lâmina no ar para limpar o sangue, devolveu a arma para a luxuosa bainha e caminhou sobre os restos da besta para continuar sua missão.

    Chegou ao fundo da caverna sem mais incômodos, se havia alguma outro habitante daquele camada por perto, entendera que deveria manter distância dele. E lá estava o que Kraj tanto procurava: outro círculo de energia negra que o levaria para o próximo nível. Dali para frente até mesmo ele, deveria manter-se atento. De agora em diante a terra dos espíritos era coberta de mistérios e perigos que deveriam ser levados a sério.

    Concentrou seu poder como um reforço a mais para prepará-lo para o que viria e mergulhou dentro do túnel.

𝑨́𝒖𝒓𝒆𝒐𝒔 - 𝑺𝒆𝒈𝒖𝒏𝒅𝒂 𝑮𝒖𝒆𝒓𝒓𝒂Where stories live. Discover now