Capítulo 47:

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Dirigi-me à casa da Clara, ponderando cuidadosamente as palavras que usaria, e bati à porta.

— Clara, posso entrar? Por favor.

A porta abriu-se lentamente.

— Tiago... Olá...

Entrei com calma.

— Podemos conversar? — questionei.

— ... Eu... não me sinto muito bem para falar agora, desculpa...

— Tudo bem, eu respeito. Mas poderias, pelo menos, ouvir-me? Gostaria de partilhar contigo algo muito importante.

— O quê?

— Algo que nunca revelei a ninguém... A verdade. A verdade sobre mim...

Ela olhou para mim, preocupada. Respirei fundo e continuei:

— Quero partilhar contigo a minha história... a minha verdadeira história...

Continuou a encarar-me. Segurou a minha mão com carinho e delicadeza, levando-me até ao seu quarto.

Sentámo-nos no centro da cama, de mãos dadas, olhando profundamente nos olhos um do outro.

Ela permaneceu em silêncio, pronta para ouvir.

— Estou um pouco nervoso. Nunca contei a minha história a ninguém...

A Clara soltou um risinho e tentou meter-se comigo:

— Mas eu já ouvi a tua história! Contaste-me quando nos conhecemos: "O meu nome é Tiago, tenho vinte e cinco anos e sou um empresário de sucesso"; e por aí vai... — comentou ela.

Sorri por um momento, segurei as suas mãos com mais firmeza, respirei fundo, juntei toda a coragem que consegui e contei-lhe a verdade:

"O meu nome é Tiago, tenho vinte e cinco anos, e sou... uma grande farsa...

Quando era pequeno, o meu pai costumava instruir-me sobre como ser um homem. Ensinou-me a ser firme, forte, valente, corajoso... Instruiu-me a não demonstrar fraquezas nem fragilidades... Ensinou-me a dominar as mulheres e usá-las para o meu próprio prazer e satisfação.

A forma egoísta, que eu considerava correta, para lidar com as mulheres, foi o que a sociedade me ensinou, começando pelo meu pai.

A minha mãe era a minha única fuga desse ambiente tóxico, mas não conseguia passar muito tempo com ela.

Nunca precisei de aprender a cozinhar, passar a ferro, nem mesmo fazer uma cama. Esse era o papel da minha mãe lá em casa. O meu era seguir os passos do meu pai, tornando-me um homem de sucesso e tendo uma legião de mulheres ao meu redor, como ele, que traía a minha mãe com qualquer beldade que aparecesse.

A minha mãe era cega. Mas, apesar disso, sempre foi muito independente! A cegueira nunca a impediu de trabalhar, cuidar da casa ou de mim, nem mesmo de perceber as traições do meu pai. Ela fazia de conta que não percebia. (Acredito que havia uma certa dependência emocional, fazendo-a pensar que não seria realmente independente sem o meu pai, mesmo ele sendo um inútil em casa.)

A minha mãe tentava aproveitar os poucos momentos que tínhamos juntos, somente os dois, mãe e filho.

Foi ela que me ensinou a ler braille. Apesar de não ter uma utilidade explícita, era uma forma de tentar entender como ela via o mundo, através dos outros sentidos.

Infelizmente, o meu tempo era quase todo consumido pelo futebol e atividades voltadas para o universo masculino, graças ao meu pai.

Com ele, aprendi muito sobre carros, luta, desporto, sobre não permitir que nenhum homem me desafiasse e sobre usar a força física para me impor (apesar da minha mãe acreditar que a agressão não é sinal de força, pois é fácil perder o controlo, difícil é resistir e  controlar a raiva, e esse controlo sim é sinal de força).

Aprendi a não me apegar a nenhuma mulher e a não deixar que elas me manipulassem, pois segundo ele, nós, homens, é que deveríamos estar no comando.

A caça era uma das atividades às quais ele me levava, considerando-a uma excelente prática masculina. Ele adorava armas. Os meus únicos brinquedos eram bolas, carros, bonecos de luta e armas de brincar.

Em relação à minha mãe, a última lembrança especial que tenho dela é de quando íamos juntos passear na praia, sozinhos.

Enquanto o meu pai passava os fins de semana com amigos e prostitutas, a minha mãe aproveitava esses raros momentos para me levar à praia, que ficava muito perto de casa.

Apesar de não conseguir ver, levava-me a observar o pôr-do-sol, no momento em que os raios refletiam nas águas, e o céu mudava de tons (uma paisagem deslumbrante).

Íamos a pé. Caminhávamos pela areia fina, sentíamos a brisa do mar e ouvíamos o som das ondas.

Ela ensinou-me algo ainda mais valioso do que a capacidade de ver: "a habilidade de sentir".

Existem belezas no mundo que não se revelam com o olhar.

CLÍMAX - vem(-te) comigoOnde histórias criam vida. Descubra agora