26 - Dores e Conquistas

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- Seu Neneco, olha minhas compras que eu vou subir.

- Subir pra onde, menina? Tá maluca? – gritou desesperado e correu em minha direção 
Não esperei e corri subindo as escadas. Alguns policiais me gritavam coisas que não compreendia. O tiroteio comia solto e parecia que explodiam bombas aqui e ali. Não sei explicar como consegui chegar em casa, e nessa hora vi dois homens saindo de lá, pulando por sobre a cerca. Atiraram contra eles e tive de me jogar no chão. Eu ouvia gritos e vozes por toda parte, mas minha garganta estava presa. Abri a porta correndo e chamei por minha avó. Fui até o quarto e vi as pernas estendidas no chão.

"Ah, não! Ah, não!"

Cheguei mais perto e a cena forte me marcou a memória. Ainda lembro muito bem do que vi. Estava deitada no chão, de lado, segurando a Bíblia e o terço. Na cabeça, na altura do ouvido direito, o buraco da bala, e um mar de sangue banhando o quarto. O projétil havia atravessado seu crânio.

"Não, isso não é verdade! Não é verdade!" Ajoelhei-me ao seu lado e percebi que não respirava e o coração não batia. "Não, isso não é verdade!"
- Nãããããoooooooooo!!!!
Tudo se passou muito rápido. Outras pessoas morreram no Cantagalo e foi comoção geral na favela. A imprensa comentou alguma coisa, mas nem sei dizer o que foi. Minha memória como que apagou alguns fatos, ou sou eu que não gosto de descrevê-los, mas apenas sei que vovó realmente já estava morta quando cheguei. O tiro foi letal. Regina  pagou as despesas do enterro, mas foi Dolores que providenciou tudo. A família de Tinker cuidou da parte religiosa da coisa, Kristin e dona Maria providenciaram coroas de flores. Ruby arrumou umas mulheres para limparem minha casa e um homem que consertou a cerca. Seu Neneco passou muito mal do coração e teve que ser internado.

No enterro apareceram muitos conhecidos, do morro e da faculdade, além do pessoal do vôlei e da capoeira. Pessoas falavam comigo, me abraçavam e beijavam, mas eu não dizia coisa alguma. Aliás, fiquei calada desde que um bombeiro socorrista me informou que vovó estava morta; coisa que eu já sabia, apenas não queria aceitar. Regina me levou para sua casa e nem sei quem foi no barraco pegar coisas minhas para arrumar nas mochilas. Sua mãe também esteve no enterro e pela primeira vez me pareceu humana. O pai estava em Brasília a negócios. E tudo isso aconteceu na segunda-feira. Não sei explicar como tantos foram avisados e como tudo se resolveu tão rápido.

Caí na cama às dez da noite e dormi sem vontade de acordar no dia seguinte. 
Fiquei uma semana no apartamento de Regina e ela me deu um suporte emocional incrível. Sua mãe não me agrediu em momento algum e respeitou minha dor com sinceridade. Dolores ficou muito comovida com tudo. Fui para a festa da premiação do concurso com Regina, e apenas porque ela me convenceu de que vovó não gostaria que eu não fosse. Tive que discursar, e muitos se emocionaram com minhas palavras. Recebi cumprimentos de muita gente e nem saberia dizer quem seriam aquelas pessoas. Fui entrevistada por uma revista da área de siderurgia e por uma emissora de TV sem muita fama. Meu orientador e o chefe do departamento pareciam os donos da festa. O segundo colocado foi um rapaz de São Paulo, e o terceiro foi da UFF.

Voltei para o morro no dia seguinte à festa, porque eu precisava, e encontrei a casa limpa e arrumada. Mexi nas coisas de vovó e isso me fez derramar muitas lágrimas, a dor era quase que insuportável. Separei roupas e coisas para dar aos mais pobres, e decidi ficar com a Bíblia e uma blusa de frio da qual ela gostava bastante. Separei a Nossa Senhora e o terço para dona Maria, que foi uma patroa amiga. Encontrei um bauzinho escondido dentro do armário e, ao abri-lo, pude ver três fotografias antigas e uma carta, do tal Juvenal que ela amou. Nas fotos pude vê-la, ainda criança, e provavelmente meus bisavós, em uma bela fazenda. Em outra, uma jovem de uns doze anos, muito parecida comigo; talvez minha mãe. Vi também um pequeno desenho de um cacau bordado em um pano grosso, amarelado pelo tempo, com o nome de uma fazenda ao lado. Alguns santinhos e um pingente de ouro com um dentinho de criança.

Além do TempoWhere stories live. Discover now