A sala do trono no Castelo da Fúria era ampla, não muito requintada, como Shans preferia, mas grande o suficiente para o Imperador se sentir confortável.
A maior parte da fortaleza ficava dentro da montanha, mas não aquela sala, o ponto mais alto da construção, projetada para a fora das rochas. Altas colunas de pedra bruta sustentavam o teto. As paredes curvadas e irregulares terminavam de repente em uma abertura comprida, como um perigoso mirante de onde era possível ver Valindra lá embaixo, a floresta morta além dela e as estradas cinzentas distantes.
O trono de Shans ficava de costas para aquela paisagem desolada, para que quem entrasse o visse sentando ali e emoldurado pelas terras que lhe pertenciam. As tochas fincadas na parede estavam fracas e exigiam ser trocadas, quase não iluminavam mais a mesa retangular no centro do salão, tomada por mapas de guerra.
Quando Denis chutou uma das pesadas portas e invadiu o salão seguido pelo pequeno grupo de rebeldes, encontrou o Imperador acomodado em sua suntuosa cadeira, a única coisa ali com algum requinte, com entalhes cuidadosos na madeira. O barbudo já os esperava, vestia apenas parte inferior da armadura, mantendo o peito e os braços nus. Denis logo viu que aquilo não era um bom sinal.
- Só isso? - indagou o Imperador com desdém, contando os invasores. - Apenas seis?
Os outros Áureos haviam se espalhado pela fortaleza para dar fim aos últimos soldados que não tinham ficado presos no corredor, não muitos e em algumas horas - se tudo corresse bem - toda a fortaleza teria sido tomada. Entretanto, nada daquilo adiantaria se Shans não caísse, era preciso cortar a cabeça da serpente.
- Acabou, Shans! - Allan usou um tom autoritário. - Sua fortaleza caiu. Renda-se!
Shans não tinham nenhuma intenção de se render, e nem os rebeldes tinham intenção de mantê-lo prisioneiro. Allan só achou que seria intimidador mostrar que estavam no controle da situação.
- Como vocês são irritantes. - O Imperador ficou de pé. Os Áureos se preparam para a luta, mas ele só caminhou em volta de seu trono. - Como entraram? Quantos espiões haviam aqui dentro? - Sorriu. - Criaram coragem para me atacar por que Kraj desapareceu, é isso? Acham que sem ele aqui vocês podem se rebelar?
- Nós nunca deixamos de nos rebelar - Isis se impôs. - Já está mais do que na hora de fazermos justiça.
- Justiça? - Ele ergueu o braço forte para apontar para a Nahin do ar. - Vocês não sabem a sorte que tiveram. Só estão vivos graças a Kraj. Se dependesse de mim eu teria exterminado todos os Áureos há muito tempo. E logo dependerá. Eu tomarei o lugar do Mestre das Sombras e vocês todos cairão.
- Vamos ver se consegue fazer isso sem a cabeça! - A impulsividade característica dos Niffj aflorou em Denis e ele partiu para cima do Imperador com velocidade impressionante.
Shans ergueu o punho e o atingiu no rosto com um soco poderoso, o barulho foi como o de um touro atingindo uma parede de aço. Denis foi lançado de volta como uma bola que vai e volta. Seu corpo arrastou-se no chão, raspando a armadura escarlate na rocha. Mesmo com toda sua resistência, um fio de sangue escorreu de seu lábio inferior.
- Que droga, Denis, não seja precipitado! - Allan o repreendeu, ajudando-o a ficar de pé.
- Foi mal - desculpou-se. - É que ele fala muita besteira.
- Vocês me fizeram um grande favor vindo aqui hoje. - Shans os encarava com um olhar negro. - Vou despedaçá-los um por um e expor os pedaços para que todos vejam que a resistência Áurea não é nada perante mim.
Dos braços do imperador, grossas correntes negras caíram para o chão, elas se remexiam como cobras, produzindo um barulho estranho que incomodava. Eram feitas da própria aura de Shans, tão corrompidas quanto seu poder.
- O primeiro será o Niffj - ele ameaçou. - Me parece ser o que tem mais pressa para morrer.
- Vamos atacar juntos - Herry sussurrou para os outros. - Denis, distrai ele, eu e Isis vamos tentar prendê-lo em um vórtice. Allan, quando ele não puder se mexer você ataca com tudo. Jon e Lil o acompanham.
Jon e Lil eram os dois Nahins do fogo, Herry foi esperto em sugerir que eles atacassem por último, quando estivessem envoltos pelo ar giratório. Ataque de chamas eram sempre mais fortes combinados com fortes correntes de para deixá-las maiores.
Com o plano preparado, os Áureos se espalharam pela sala. Denis partiu para cima do Imperador, com a espada em mãos, pronto para desviar-se das correntes letais de Shans. O Imperador moveu o braço direito e a corrente acompanhou o movimento, a energia negra avançou contra o Niffj como se tivesse vida própria. Abaixou-se e deslizou para escapar do golpe. Rolou para o lado e continuou correndo.
Isis e Herry se mantiveram um ao lado do outro e combinaram suas auras para girar o ar em volta de Shans, para limitar seus movimentos, mas não conseguiram manter por muito tempo. A outra corrente negra ergueu-se e chicoteou o chão entre os dois Nahins, que foram obrigados a se afastarem para não serem atingidos.
Allan cerrou os dentes, os olhos vibraram enquanto ele movimentava rochas pontiagudas das paredes em direção ao Imperador. Porém, foi inútil, as duas correntes se uniram para formar uma barreira contra as lanças de rocha. Jon e Lil viram ali uma chance para incinerar o inimigo. Juntaram os braços ao mesmo tempo e conjuraram uma labareda verde que encobriu Shans.
O ataque foi possante a ponto de lançar o corpo do imperador contra uma das colunas, as correntes o acompanharam e se esparramaram pelo chão junto de seu mestre. A fumaça espalhou-se pelo ar, turvando a visão dos Áureos, Isis afastou-as e gritou:
- Continuem atacando!
Mal ela fechou a boca, uma das correntes ganhou vida novamente e acertou um Jon no peito. Denis conseguiu ouvir algum osso se quebrando enquanto o Nahin se estatelava no chão. Allan ficou surpreso, Shans nem ao menos tinha se mexido para atacar. O Imperador se levantou aos poucos, enraivecido.
- Malditos Nahins. Como se atrevem?!
Lil correu até o Áureo caído, assustou-se ao ver a ponta de uma costela quebrada varando a pele do Nahin de dentro para fora; o sangue se espalhava rápido.
- Jon está muito ferido! - ela avisou aos outros.
- Tira ele daqui! - Denis ordenou e, sabendo que Shans não permitiria que saíssem, lançou-se sobre o Imperador, desafiando as correntes negras com sua espada.
Os demais deram cobertura para Lil que carregava seu companheiro para fora do salão.
Apesar da vantagem numérica, os rebeldes não conseguiam se quer ferir Shans. O plano com o qual entraram ali, de pegá-lo de surpresa e matá-lo rápido, havia ido por água a baixo. O Imperador já os aguardava, preparado para defender sua fortaleza. Agora não havia mais volta, ou o venciam de qualquer modo, ou estariam todos mortos.
Denis atacava incansavelmente com a espada, movendo-se agilmente entre as correntes negras, entretanto, era difícil se aproximar para um golpe que pudesse causar alguma dano. Allan, correu para ajudá-lo, cobrindo seu braços com plaquetas de rocha para aumentar o peso de seus socos. O Nahin da terra era quase tão grande quanto o barbudo Imperador e o tamanho lhe permitiu encaixar o punho rochoso no queixo do Espectro. Denis não desperdiçou a chance, aproveitou os segundos em que ele se recuperava do golpe e afundou-lhe a espada em seu peito; tentou afundar. Apesar da força Niffj, a lâmina cravou-se alguns poucos centímetros na pele tatuada do Imperador, deixando escapar apenas um fino fio de sangue negro.
Shans abriu um largo sorriso de escárnio, como se aquilo fosse uma brincadeira divertida, e moveu suas correntes em um movimento giratório que atingiu os dois Áureos de uma vez, arremessando-os como bonecos de palha contra as paredes. A armadura de Denis rangeu e envergou-se no local do impacto. Allan perdeu o ar dos pulmões quando chocou-se contra a pedra e caiu no chão rolando de dor.
Os dois Nahins do ar se entreolharam, receosos de que, talvez, aquele fosse ser a última luta que enfrentariam. Nenhum deles havia esquecido o que Shans havia feito durante a Guerra Áurea, sabiam que estavam diante do Espectro que assassinara milhares de Áureos. Porém, como guardiões, eles não se renderiam ao inimigo, mesmo que poderoso. Isis e Herry já haviam lutado muitas vezes juntos, já tinham um entrosamento sólido em batalha, bastou um olhar para concordarem com o que fariam a seguir.
- Está pronto? - Isis indagou, já assumindo a postura.
- Sempre estive. - Herry a imitou, manteve os braços curvados enfrente ao corpo com as mãos abertas e os dedos retos perto do rosto. Os dois eram como duas estátuas gêmeas de olhar cor de esmeralda.
A técnica que se preparavam para executar era conhecida como Sopro de Lâmina e consistia em comprimir uma única corrente de ar para aumentar a sua pressão ao ponto de partir objetos sólidos quando lançada em grande velocidade. Não é algo fácil para um único Nahin dominar, mas Isis e Herry haviam treinado para executar a técnica juntos, dividindo o esforço. Se aquilo seria suficiente para vencer Shans, eles logo descobririam.
Felizmente eles estavam em um lugar alto, próximo a uma grande abertura por onde o vento das primeiras horas do dia entrava, isso facilitou a captura das correntes de ar. Os dois Áureos, em movimentos ensaiados e sincronizados, "espremeram" o ar até ouvir um chiar baixo. A pressão aumentada também gerava calor e aquecia o entorno.
Shans sentiu a mudança da aura dos dois Nahin e virou-se para eles.
- Brincando com os elementos de novo? - ele debochou. - Vocês não têm ideia de como eu odeio Nahins.
As correntes agitaram-se, preparando mais um ataque. Isis e Herry, entretanto, não dariam chance para tal, esticaram os braços para frente como se fossem um só e o ar comprimido avançou ondulando em forma de lâmina na direção do imperador. O ataque foi rápido e impossível de desviar já que era quase invisível.
Por puro reflexo, Shans protegeu o corpo com suas correntes negras. Elas partiram-se quando a faca de ar as atingiu em cheio. Shans caiu para trás com a o baque e a surpresa. Dois cortes profundos marcaram o braço e peito do Imperador. Não fosse a proteção das correntes negras, que absorveram boa parte do impacto, Shans teria sido cortado ao meio.
Denis e Allan se levantaram, ainda tontos, e viram que Shans tinha sido ferido e suas correntes jaziam despedaçadas no chão. Fitaram os dois Nahins do ar concentrados em suas posturas de ataque.
- Não cheguem perto - Herry avisou. - É difícil controlar essa técnica, podemos acertar vocês.
Nem Denis nem Allan tinham qualquer intenção de ficar na frente dos dois Nahins. Outra massa de ar já estava chispando entre eles, pronta para acabar com o inimigo, e dessa dez não haveria nada que o protegeria.
Shans ergueu a cabeça, estava de joelhos, se levantando lentamente, seu sangue negro manchava o chão. O segundo Sopro de Lâmina veio ainda mais pulsante que o primeiro, seria o fim do Imperador. Ele fechou o punho enorme e calejado das batalhas, seu olhar enegreceu. O braço desnudo foi erguido para os dois Áureos como um aríete pronto para esmagá-los e três novas correntes brotaram de sua pele. A primeira despedaçou-se no ar pressurizado em seu caminho. As outras duas avançaram como vermes furiosos e chicotearam os dois Áureos ao mesmo tempo. Isis e Harry caíram juntos.
Era aquilo que Denis temia, que todos ali deveriam impedir que Shans fizesse: usasse a forma Espectral. Nem todos os Espectros mudavam visualmente quando alcançavam aquele nível de poder. Shans era um desses, cuja única mudança era em sua aura que multiplicava de tamanho. Denis se lembrava da Guerra Áurea, quando Shans varria os campos de batalha controlando dezenas de correntes negras em volta do corpo. Então ele soube naquele momento, vendo os corpos inertes de seus dois amigos caídos no chão, que não eram capazes de vencer aquela batalha. Foi um plano suicida desde o começo.
- Denis! - Allan o chamou do outro lado do salão. - Denis, o que está fazendo aí parado. Vamos lutar!
O Niffj voltou a si, infelizmente não teriam como ajudar Isis ou Harry agora. Denis fitou a espada torta em sua mão e jogou longe, aquela arma ridícula seria inútil. Desafivelou a couraça escarlate amassada que apertava-lhe o peito, deixando-a cair no chão com um tinido. Queria liberdade total de movimentos, nenhuma armadura o protegeria contra Shans. Cerrou os punhos como um boxeador e falou para Allan, sem deixar de encarar o Imperador:
- Hoje é um bom dia para morrer, Allan?
- Vamos descobrir - respondeu o Nahin.
Shans nada disse diante da determinação dos dois Áureos que sobraram. Admitia para si mesmo que eles tinham feito um belo trabalho invadindo o castelo com um contingente tão diminuto, mas haviam cometido um erro grave ao achar que poderiam vencer um Imperador com tão pouco poder. São apenas guerreiros de baixo nível, pensou com desprezo.
As correntes vibraram, ansiosas para despedaçar outro corpo. Denis aumentou sua aura o máximo que seu corpo cansado permitiu e Allan deslocou pedaços do chão para defendê-lo. Foi quando eles sentiram. Uma aura grande o suficiente para se igualar a de Shans. Era intensa e vibrava com um único sentimento: raiva.
Shans juntou as sobrancelhas, perguntando-se quem mais estava com aquele grupo de rebeldes. Uma forte corrente de ar escancarou a porta do salão revelando uma silhueta alta e esguia no umbral.
- Lara! - Allan exclamou ao reconhecer o olhar brilhante de sua líder.
- Peguem os feridos e saíam - ela ordenou com o arco na mão, encarando o Espectro barbudo. - Eu vou terminar isso.
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