26. Uma experiência sobrenatural

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— A beleza esfuziante de Kerana atraiu a atenção de Tau, o espírito maligno, que se apaixonou por ela. — Porãsy ouvia o primo, como se o som viesse de muito longe. Na sua mente, ela vivia o que ele descrevia. — Ele quis tê-la como sua esposa e depois de sete dias de luta com Angatupyry, que não podia aprovar aquela união funesta, a raptou.

— Por que funesta? — perguntou Guarasyáva?

— Porque Tau era um espírito do mal, lembra? — disse Tupinambá caçoando da amiga.

Em seu transe Porãsy observou uma rede armada entre duas árvores. Ao fundo um rio fluía com águas perfeitas. Na rede estava uma adolescente de mais ou menos sua idade. Kerana, ela pensou. Essa menina é minha sobrinha Kerana. Ela é a filha de meu irmão Marangatu.

Apesar do absurdo da situação, esse pensamento não intrigou Porãsy. Pelo contrário, ela se aproximou da rede e admirou a beleza da sobrinha. A garota dormia e seu sono era tranquilo. Parecia sonhar com mundos mágicos, pois seus lábios se moviam em um sorriso silencioso.

Um barulho e um movimento chamaram a atenção de Porãsy. Vindo sabe-se lá de onde, um ser se materializou um pouco adiante, em forma de um adolescente. Ele era lindo! Tinha o cabelo em cores do céu noturno em noites sem estrelas, usava um tecido branco de algodão, em volta da cintura, que se entendia até às coxas, e tinha pinturas nos braços e peito. Nas mãos trazia uma flauta de madeira que começou a tocar. Tau? Porãsy se perguntou. O garoto não deu sinais de notá-la.

Na rede a sobrinha se moveu. Porãsy entendeu que ela ouvia o som da flauta em seus sonhos e que a música estava agindo sobre ela. O garoto se aproximou da rede e Kerana acordou.

Ao despertar a garota notou o rapaz ao seu lado. Olhou-o encantada e sorriu. Seu sorriso era de uma pessoa apaixonada ou, mais que isso, enfeitiçada. A flauta! pensou Porãsy, ela está sendo enfeitiçada pela música da flauta!

Kerana se moveu na rede, espreguiçou e se sentou. Tau se sentou ao seu lado e continuou tocando a flauta por mais alguns instantes. Quando sentiu que a havia envolvido completamente parou. Começou então a conversar com ela e o som de sua voz perturbou Porãsy.

A voz do deus lembrava o rufar de tambores na mata, o barulho do chocalho que ressoava em dias de danças e rezas, o som surdo da taquara das mulheres no chão seco, nas comemorações e cerimônias de adoração da etnia.

Tau falou com Kerana de lugares distantes de onde dizia ter vindo. Comentou da beleza das matas, dos campos e cerrados, dos rios e lagoas e do frescor das águas daqueles lugares remotos. A fez experimentar a doçura das frutas que trouxera. Fez ela acreditar que ele pertencia a um povo forte, justo e querido que vivia além das montanhas, das quais ela só ouvira em relatos dos guerreiros desbravadores. Lugares em que Kerana jamais sonhara ir ou conhecer. Ela ouvia extasiada e Porãsy observava a tudo, inerte. Era seu fardo: observar e aprender.

— Os outros deuses ficaram exasperados com a atitude de Tau e decidiram castigá-lo — Thomas continuava contando a história.

— O que é ficar exasperado? — perguntou Guarasyáva talvez só com a intenção de irritar o garoto.

— Ficar irritado, bravo, com muita raiva! Como eu estou de você agora! — respondeu Tupinambá novamente. — Tenho certeza de que você sabia o que quer dizer. Só perguntou para interromper. Cala a boca e escuta!

— Não sabia — disse Guarasyáva. — Pensa que sei tudo do português? Ainda mais que essa não é minha língua materna.

Guarasyáva torceu os lábios, irritada.

Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora