20. Volta à escola (parte 3)

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— E você? — De repente, ela ficou muito curiosa em saber. — De onde você é? Me disseram que você não é daqui e que tem pouco tempo que moram aqui.

— Quem disse? O que disseram? O que disseram sobre mim? — Então o rapaz ficou assustado ou irritado... talvez perturbado.

— Sei lá. — Porãsy ficou sem graça ao se lembrar do que falavam dele e dos irmãos. — As pessoas criam histórias, inventam lendas, fofocam... Você sabe, né?

— Não. Não sei. Você pode me falar? O que falam de mim?

Porãsy queria saber interpretar o seu tom de voz e expressão do rosto. Não sabia se estava nervoso, irritado, ou somente curioso.

— Bem... deixa pra lá — respondeu, por fim. — São histórias idiotas. Eu mesma não dei atenção a nenhuma a elas.

— Será mesmo que não deu? — Nesse momento, a expressão dele foi de raiva. Ficou estampado em seu rosto uma fúria, um ódio. Parecia que a odiava. De novo! — Será que você não acreditou mesmo, Porãsy? — E destacou seu nome, dizendo-o de uma forma muito estranha, ameaçadora.

— O quê? — ela perguntou, estranhando toda aquela conversa.

Não estava gostando do tom de sua voz. Uma parte em seu ser já queria partir para cima dele e atacá-lo. Realmente, era como a mãe dizia, ela estava em uma idade muito complicada. Seu estado emocional se alterava muito rapidamente e por coisas muito simples. Antes ela não era assim, tinha certeza!

— Será que você não deu mesmo atenção às histórias ouvidas, Porãsy? — disse, novamente destacando o seu nome. — Será que eu posso acreditar nisso? — De novo a expressão de ódio.

— O que foi, cara? — Ela estava a um passo da explosão. Sua voz estava irritada, embora falasse baixo — Quer dizer alguma coisa para mim diz de uma vez. Parece que você tá remoendo alguma coisa que quer me dizer, mas não diz. O que foi? Não tem coragem?

— Eu sei quem você é, Porãsy — ele disse de forma firme e enfática, com uma fúria clara na tonalidade da voz e no olhar com que a encarava. — Nós sabemos quem é você, Porãsy. Então eu acho que é você que não está sendo sincera.

A outra Porãsy.... Então ela entendeu. Ele falava da outra Porãsy. A Porãsy da mitologia. Ou das lendas... E ela queria acreditar então, com toda sua força, que fossem apenas lendas. As dúvidas vieram em torrentes e queria saber tudo. Iria até o fim daquela história. Queria descobrir quem era ele de verdade e se o que falavam era verdade ou tinha alguma relação com a verdade.

No entanto, quando ela se virou para perguntar, ele olhou profundamente em seus olhos. Suas mãos manipulavam o colar de cordão e osso — ou de dente de animal, ela nunca sabia exatamente o que era — que ele tinha no pescoço. De sua boca foram sussurradas palavras estranhas. Então, de repente, Porãsy se sentiu confusa. Não se lembrava mais o que ia perguntar, parecia que som e imagem apagaram. Quase no mesmo instante sua cabeça começou a doer e ela se sentiu mais uma vez enjoada.

— Tudo bem? — ele perguntou.

— Não. De repente minha cabeça começou a doer e meu estômago ficou ruim. Estou enjoada.

— Fica quieta um pouco que passa. Eu fico assim de vez em quando também. É o calor e essa poeira. Vai passar.

Ela colocou suas mãos no banco da frente e abaixou a cabeça sobre elas. Não conversaram mais naquele dia. Porãsy só se sentiu um pouco melhor depois que ele desceu. Ela sequer levantou a cabeça, quando ele saiu, e não respondeu ao seu "tchau". Nem viu, na verdade, ele dando "tchau".

Assim que ele saiu, as meninas se voltaram para ela com mil perguntas, mas ela estava com dor de cabeça e enjoada. Não tinha ânimo para falar com ninguém. Permaneceu quieta e em silêncio

Continuar no ônibus até o ponto em que descia não foi muito fácil. O estômago estava embrulhado e ela queria vomitar. Tudo aconteceu muito rápido. Ela estava bem quando entrou no ônibus, não sentia nada daquilo e, de repente, ficou ruim. E ainda tinha a gripe que não passava!

Caminhar até sua casa também não foi tarefa fácil. Suas pernas estavam pesadas, o coração acelerado e ela se sentia muito cansada e fraca. Sua irmã a ajudou a entrar em casa preocupada.

Ao chegar em casa passou direto para o quarto, mais uma vez. A mãe veio atrás dela. Percebeu que a filha não estava bem.

— O que foi, filha? Não vai almoçar?

— Vou, mãe. Só enjoei no ônibus.

Porãsy conseguiu comer um pouco. Ainda que se sentindo péssima, ajudou a mãe e irmã com as louças e limpeza da casa. Depois, quando a mãe voltou para o trabalho para dar aulas na pequena escola da aldeia, ela se deitou. Seu corpo estava estranho. Mais uma vez...

À tardinha, conseguiu se levantar da cama, mas não saiu para lugar nenhum. Um vento muito forte ameaçava derrubar as árvores e uma tempestade se prenunciava. Seus pais já estavam em casa, da cozinha o cheiro do jantar vinha suave.

Não demorou muito e a chuva começou a cair. Os raios e trovões ameaçadores tomaram conta do céu. As árvores balançavam, os galhos e folhas querendo tocar o chão. A cada relâmpago que cortava o céu em fúria e a cada trovão mais forte, Porãsy se lembrava das palavras do avô Tupã'y: É Tupã, o deus da chuva, atravessando os céus. Ele está indo em direção à casa da sua mãe, Nhande Sy, a deusa primeira, que habita o outro lado do cosmos. Está sendo conduzido em sua liteira, por seus avaetés, seus servos eternos.

Porãsy se sentiu como que ao ar livre, debaixo da chuva, sendo lavada. Era como se seus males saíssem dela na mesma proporção em que a chuva caía. Logo adormeceu, mais leve. Os sonhos a tomaram nos braços e a embalaram, contando seus segredos.


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Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora