8. Pirakuá: o buraco do peixe (parte 2)

327 46 73
                                    


Por fim, chegaram à casa que seria a morada deles nos próximos meses. Uma casa! Enfim, moraremos em uma casa de verdade, pensou Porãsy. A casa era pequena, de alvenaria, telhas de barro, paredes pintadas de branco e com piso de azulejo. Havia uma cozinha organizada, dois quartos, um banheiro, uma pequena garagem e uma área de serviço.

Era uma casa pequena, mas, com certeza, tinha muito mais conforto do que o barraco onde moravam antes. Mas isso não impressionou nenhum dos membros da família, ainda menos à Porãsy, que continuava muito desapontada com a mudança.

Itabira desceu as malas que trazia e Porãsy fez o mesmo. Amandy, no colo de Dhiacuí, parecia dormir. Aparentemente as pessoas do local tinham lavado a casa para receber a família, pois estava tudo muito limpo. Porãsy olhou em volta e, quando viu uma porta que pensou ser de um quarto, foi até lá e a abriu. Era um quarto, sim, com duas camas de solteiro e uma cômoda. Esse será o nosso quarto, decidiu a adolescente.

— Legal, gostei — Yvy Rajy disse, colocando suas coisas em um canto e já abrindo sua mala. — As duas gavetas de cima são minhas.

— Ah não! Não vem, que não tem! — exasperou Porãsy.

— Falei primeiro. São minhas! — insistiu a irmã, e ela percebeu que perdera a chance de ser mais rápida na demarcação de território e definição de posses.

Porãsy olhou abatida para as três gavetas que sobraram.

— Então as outras duas são minhas. As coisas de Amandy ficam na mais de baixo — Pronto. Pelo menos garantiu, assim, um espaço não tão baixo. Amandy era pequena mesmo.

A mãe das meninas ajeitou a pequena sonolenta em uma das camas e foi ajudar o marido a descarregar o resto dos seus parcos objetos.

A aldeia Pirakuá era uma exceção à regra das aldeias Kaiowá, no MS, pois não era uma Reserva, não era um espaço de confinamento. Era uma aldeia, território tradicional, um lugar de retomada, o tekoha de um povo: o povo Kaiowá.

Enquanto as reservas, como a Reserva Indígena de Dourados, com cerca de 15 mil pessoas em um espaço mínimo de 3.475 hectares, estavam cercadas pelas cidades e abarrotadas de indígenas de diferentes etnias, a Aldeia de Pirakuá era uma Aldeia Kaiowá e tinha rios e matas, onde ainda era possível, mesmo que de forma limitada, se praticar a caça e a pesca. As casas ficavam longes umas das outras, o que permitia, e Porãsy averiguou isso enquanto se dirigiam à nova casa, pequenas roças e criação de animais, como galinhas, porcos e até gado. Também estava distante de Bela Vista cerca de sessenta quilômetros, o que garantia um afastamento da sociedade Karaí e das intervenções destrutivas destes.

No entanto, Porãsy conhecia a história dessa aldeia e de outras próximas a ela, como a aldeia Campestre. Era uma história de derramamento de sangue, de perda de vidas. Seu avô e seus pais já haviam contado de Marçal Tupã'i, o indígena Guarani morto naquelas terras, para eles um verdadeiro herói de seu povo. Tupã'i, palavra que na língua do povo significa Pequeno Deus, nesse caso indicava a origem celestial de Marçal. Ou seja, ele era oriundo do patamar celestial de Tupã.

— Vai tomar um banho, Porãsy. Você precisa descansar — Dhiacuí entrou no quarto com mais um pouco de coisas de Amandy e depositou no chão. Porãsy pensava onde guardariam tudo, pois não havia um guarda-roupas ou nada semelhante, ali. — Amanhã, vocês terão que ir à escola fazer matrícula, para já começarem a estudar. Me disseram que o ônibus passa no ponto às cinco e quarenta e cinco. Disseram, também, que são cerca de dois quilômetros, daqui até no ponto.

— Cinco e quarenta e cinco?!! Ai Xe Járy! E que horas teremos que nos levantar? — Yvy Rajy foi mais rápida do que Porãsy, desta vez, em se indignar e questionar.

— Acho que lá pelas cinco horas, e estejam de pé nesse horário — respondeu a mãe, sem se importar com o tom de voz usado pela filha mais velha. Ela também estava cansada e não queria mais discussões.

Se antes Porãsy já estava desanimada com tudo, aquela informação acabou de vez com ela. Sequer conseguia se manter de pé, seu corpo e cabeça estavam alquebrados, estava muito abatida e, agora, mais isso: teriam de levantar de madrugada para ir à escola. A menina só não falou alguns palavrões porque sabia que seu pai ficaria muito bravo, no entanto, no seu interior, xingou, mas só um xingamento suave. Nem chegou a usar os piores que conhecia.

Abriu sua mochila, onde estavam suas coisas de higiene pessoal, pegou o que necessitava para o banho, uma toalha e roupa na mala, e foi para o banheiro. Enquanto caminhava em direção à porta do banheiro, ela torceu muito para que a água fosse quente. Não estava nem um pouco disposta a enfrentar água fria, e não enfrentaria, ainda que tivesse que só fazer de conta que havia tomado banho.

No banheiro havia um espelho grande e deu para a menina ver que estava com uma aparência horrível, como era de se esperar. Mas não era só algo externo; era interno, um estado quase depressivo.

Como ela iria se acostumar ali? Ela se relacionava bem com pessoas, mas tinha o seu grupo seleto de amigas e amigos. Sabia onde e com quem estar, aqueles que não a rejeitariam por ser uma adolescente indígena que morava em um barraco, em uma aldeia de retomada. Sabia também com quem não deveria estar, como seu primo, que era chato de nascença, e os horríveis filhos dos fazendeiros latifundiários.

E, por incrível que pudesse parecer, Porãsy chegou a sentir falta, naquele momento, até do seu primo chato. Devia estar mesmo muito doente e seu estado de depressão ser maior do que imaginava, ela pensou, observando-se no espelho. Para estar sentindo falta do primo, eu tenho que estar muito doente, concluiu em pensamento.

A adolescente abriu o chuveiro e se animou ao ouvir o barulho da corrente elétrica aquecendo a água. Pelo menos isso. Bom, o banho seria o menor dos seus infortúnios, naquele lugar. Mas a pior coisa era o que a esperava para o dia seguinte, o seu primeiro dia de aula em uma escola e cidade estranhas.

E ela não tinha como fugir daquilo. 

><><

(Não se esqueça de comentar e clicar na estrelinha!) 

Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora