29. Na caverna em Cerro Cavaju

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O dia ainda estava escuro, mas em meio às gramíneas e plantas baixas do mato rarefeito, em uma região próxima à conhecida como Buraco do Peixe, alguém se movia. Mais à frente, onde uma pequena corrente de água enfeitava o ermo, em meio à vegetação e escondida por ela, encontrava-se a entrada de uma caverna, que poderia passar despercebida pela maioria das pessoas, mas não por aquela pessoa. Era nítido que seu intuito era ir para o buraco que dava entrada à gruta, pois se dirigia ao local com passos firmes e determinados, ainda que quase que deslizando sobre as folhas molhadas de orvalho.

O vulto, que se movia de forma ágil, mas com cuidado e atenção, verificando onde pisava, era de uma menina adolescente. Ela tinha as roupas sujas e rasgadas, apresentava arranhões e tinha ferimentos nos braços e pernas. Dos olhos, escorriam lágrimas que construíam caminhos em meio a poeira que envolvia sua face e corpo. A garota chorava, soluçando em silêncio, mas, ainda assim, continuava caminhando com firmeza e totalmente direcionada. Ainda que ninguém pudesse saber ou ver, a menina era Porasy e a localidade para a qual ela se dirigia era a caverna do terrível Monhãi.

O sol ainda estava longe de surgir no horizonte, sobre as colinas e matas de Pirakuá, quando ela saira das cavernas do Buraco do Peixe e partira para a gruta onde o monstro, o terceiro filho de Tau e Kerana, vivia e acumulava seus tesouros. Caminhou sozinha em meio à escuridão do mato fechado, localizado às margens de Rio Apa, tocando e sentindo a consistência de cada folha, de cada planta que a cercava. Deu-se conta de que conseguia ouvir e reconhecer o barulho de diferentes animais, tanto no solo, como nas árvores e até voando. Porasy não entendia como isso era possível, mas agora conhecia cada planta do local com um simples toque, ou sentindo o seu cheiro ao ser quebrada ou esmagada na mão, sabendo enumerar suas propriedades, fossem elas curativas ou tóxicas. Era como se esse conhecimento tivesse surgido do nada, ou como se fosse algo inato que estivesse apagado e, de repente, aflorasse uma vez mais em seu ser, correndo em seu sangue e dominando sua mente.

A garota estava determinada. Ainda que agitada, machucada e sofrendo, sua consciência se expandia, entendia seu papel nas histórias que o avô contava. Sabia agora isso, inclusive, através da ciência que obteve sobre a flora e a fauna após tomar a infusão que Kurupiry lhe oferecera na caverna, não de forma gentil, é claro. O véu de sua ignorância fora então rasgado, ela estava completa. Una com sua sina e com sua ancestralidade.

O sol começava a se impor sobre a paisagem de mato e gramíneas, quando Porasy finalmente se aproximou da entrada da caverna. Nas proximidades, ao passar por um pequeno córrego de águas límpidas e povoadas de seres aquáticos — ela os sentiu e ouviu os diversos peixes —, a menina entrou nas águas.

Porãsy se banhou cuidadosamente esfregando no corpo a areia fina e folhas de plantas das margens, que exalavam um perfume peculiar e encantador. Lavou os cabelos com o óleo de sementes que também se encontravam por ali. Lavou também suas roupas, que voltou a vestir.

Respirou fundo, se recompondo. A pouca claridade não deixava perceber perfeitamente, mas mesmo assim, ela era a menina mais linda que se podia conhecer, e seu encanto irradiava de todo seu ser.

Ao sair das águas a garota foi envolta por uma rajada de vento que secou seus cabelos e vestes. Havia magia naquele lugar, ela soube no mesmo instante. Coisa de deuses e, talvez, demônios, já que ela não sabia definir, com certeza, qual a natureza predominante nos filhos de Tau e Kerana. Talvez a própria Kerana estivesse atuando na região. Ela sempre amara profundamente seus filhos, cada um deles, mesmo quando a deusa Arasy os amaldiçoou e os transformou no que eram agora: horripilantes monstros.

Porãsy ajeitou os cabelos com as mãos. Eles eram lisos e longos, de uma cor preta esfuziante e agora estavam sedosos e esvoaçantes. Porasy colocou neles flores brancas, que fizeram um maravilhoso contraste com os raios de sol que surgiam no céu, elas cresceram vivamente em contato com sua cabeleira. Porasy estava linda. Totalmente digna de sua alcunha: a mãe de toda a beleza.

A garota se virou e avançou destemida. Quando se aproximou da entrada de Cerro Cavaju, em cuja caverna vivia e descansava o monstro Monhãi, Porasy redobrou os cuidados. Andava de forma quase imperceptível e como uma sombra adentrou a caverna. Sabia exatamente o que a esperava. Um pequeno brilho indicava a presença de uma tocha de fogo presa à parede da gruta. Porasy entrou suavemente, sem fazer o menor ruído. Estava agitada em seu interior, mas não demonstrava nada externamente. Ela sabia que Monhãi, ainda que estivesse dormindo, não demoraria a sentir sua presença. A percepção aumentada pelas memórias da primeira Porasy a faziam agir como uma guerreira.

Um odor fétido irradiou da caverna mal iluminada e, como o deslizar de vermes, o mau cheiro queria tomar conta de Porasy. No entanto, o perfume das matas e das flores que dela irradiava, a fragrância das folhas, o bálsamo das diferentes árvores e o frescor da água límpida repeliram o mau odor. O perfume da garota invadiu e tomou conta do lugar, mantendo-a incólume e intocada. Ela avançou, caminhando descalça e sentindo o toque úmido da terra sob seus pés.

Com um frenético bater de asas, um bando de morcegos, incomodados pela presença inesperada, alçaram voo e saíram pela entrada da caverna. A menina se assustou e se abaixou rapidamente, dando espaço aos animais que, ao passarem por ela, a reconheceram e pousaram em plantas próximas, onde passaram a aguardar o desenrolar dos acontecimentos dentro da residência do protetor da terra e dos ventos, o Senhor dos Campos. Eles temiam pela adolescente, mas temiam, ainda mais, por seu senhor e dono.

Já dentro da caverna, Porasy parou em um espaço que seria a primeira "sala" do local. Um grande corredor dava entrada a um outro espaço, mais à frente, onde também havia uma iluminação precária nas paredes. Por instantes, ela não soube se prosseguia para a outra sala ou se aguardava ali, mas a decisão final, de aguardar ou avançar, não foi dela, pois ouviu um barulho vindo do interior da caverna. Um sibilar alto e o som do deslizar de uma gigantesca cobra. Ela não teve dúvidas: Monhãi se aproximava.

O monstro híbrido, com corpo de uma enorme serpente e um par de chifres que funcionava como antenas, percebeu, no ar, a presença da garota e veio ao seu encontro. Porasy sentiu o mover do corpo largo e viscoso do monstro, antes de vê-lo devido a semiescuridão do lugar. Seu coração acelerou e, desesperada, ela recostou uma das mãos na parede com medo de cair, mas, ao sentir a textura pegajosa do lugar onde o monstro deslizara por tantas vezes, ela retirou a mão rapidamente. Seu coração queria sair pela boca.

Pela primeira vez, naquele dia, desde o momento em que saíra da caverna de Kurupi e Jasy Jaterê, Porasy pensou que não conseguiria cumprir o seu propósito. Ela não via como completaria a tarefa que a levou até ali. Sem controle da respiração e do corpo, que se agitava trêmulo, Porasy não conseguia se mover ou sair do lugar, mas também ão tinha mais como fugir. Seu destino estava traçado.

Na sua frente, Monhãy estava em toda sua majestade e envergadura descomunal. Seus olhos brilhavam frios, ele abriu a bocarra e suas presas brancas destoavam do ambiente ao redor.


Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora