22. Encontro com Kaja'a (parte 1)

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O rapaz corria com todas as suas forças dentro da mata, se desviando de raízes, folhas, cipós e galhos que insistiam em aparecer em seu caminho, lhe arranhando os braços e pernas. Seu coração estava mais rápido que seus pulmões. Estava esgotado. Tinha muito tempo que vagava desorientado. Talvez estivesse mesmo perdido. Parecia que nunca chegaria ao seu destino, mas não podia parar. Não podia se dar a esse luxo de parar e descansar. Estava sendo caçado e se parasse, seria seu fim. Então buscou forças sem saber de onde para prosseguir. De repente, viu-se em frente a um rio com margem alta. Havia pedras de um lado e do outro a água formava torvelinhos. Não tinha para onde seguir. O inimigo se aproximava e não tinha como voltar. A única chance, se é que tinha alguma, seria atravessar o rio, então fez o que lhe pareceu ser a única solução: jogou-se na água e mergulhou.

— Você já pronto, filho? — o pai de Sérgio o chamou abrindo a porta do quarto.

O garoto, que se encontrava em meio a uma partida de jogo, se assustou e desconcentrou. Na tela do computador seu personagem foi lançado pelas águas sobre as rochas e ele perdeu mais uma vida.

— Ê, pai... olha aí. Fez eu morrer. — No jogo, a vida do rapaz se esvaía em sangue, sujando as águas de vermelho.

— Desculpe, filho. Não queria que você morresse. — O pai tinha uma expressão sarcástica no rosto. — Nem pensei que você estava jogando. Está na hora. Você pronto?

— Opa! Estou pronto, sim! — Sérgio respondeu, fechando o jogo, desligando o computador e se colocando de pé em seguida.

O pai havia combinado com ele, na volta da escola daquele dia, de irem pescar assim que ele chegasse do serviço. O garoto adorava pescaria. Nesses momentos com o pai partilhavam instantes só dos dois. Pai e filho sempre saíam juntos para algum rio nas proximidades da cidade.

— Choveu bem forte ontem, né? E por causa da chuva a gente deve pegar muitos peixes — disse o pai do garoto.

— Onde o senhor está pensando em ir?

— No rio que dá em Pirakuá, o Buraco de Peixe. Com a chuva que deu, deve estar ótimo para pescar. A água deve estar turva e deve estar dando muito peixe lá.

— No Buraco do Peixe, pai? Aquele lugar não é assombrado?

— Assombrado, filho? Sério mesmo? Você anda ouvindo muitas histórias desse povo supersticioso. Isso são só crendices. Esse povo acredita em tudo. Vamos, não demora! Você vai ver que não tem nada, lá além de água e peixe. Já pesquei muito, lá.

— Tá bom. Se o senhor diz, né.... — disse o garoto. — Vamos então.

Sérgio pegou sua mochila sobre a cadeira, onde tinha colocado de antemão o que considerava importante levar: algumas coisas para comer, duas garrafas com água e iscas. Ajeitou a mochila nas costas e seguiu o pai.

Pai e filho se despediram da mãe que estava na cozinha e se dirigiram ao carro. Assim que entraram e se assentaram, ajeitaram os cintos. O pai apertou o botão do controle remoto e o portão se abriu. O carro deslizou para fora, alcançando o asfalto.

Em pouco mais de meia hora, seu pai mais dois amigos e Sérgio, estavam no caminho, dentro da mata, que levava ao rio que terminava no lugar chamado de Buraco do Peixe. Tinham deixado o carro estacionado na beira da estrada de terra e seguiam a pé pelo mato.

Sérgio estava um pouco apreensivo. Nunca estivera naquele lugar, mas havia ouvido muitas histórias sobre coisas que aconteciam ali. Histórias e lendas. Muita crendice, como disse o pai, mas se lembrava de que alguns pescadores que trabalhavam para o pai haviam visto coisas naquele lugar. Seres e bichos estranhos que não sabiam descrever. Diziam de um lagarto gigante com várias cabeças, de uma cobra com cabeça de papagaio que voava... coisas assim. O pai ria e dizia sempre que tudo não passava de lendas e superstição do povo.

E, de repente, o lugar apareceu. O rio com as águas turvas pela chuva estava ali, mas por mais incrível que isso soasse, ele sumia dentro de um buraco na rocha do morro, como já ouvira pessoas descreverem.

Bem isso: o rio deslizava tranquilo até ali, formava um torvelinho, e sumia dentro da rocha, em um imenso buraco. Sérgio chegou a levar um susto. Era como a cena do jogo que jogava no computador antes de sair de casa com o pai. Ele se lembrou e associou.

O adolescente contemplou as águas, perdido em seus pensamentos. Achou tudo muito estranho, mas não podia negar que era tudo muito lindo também. Ele observou que a água escorria tranquila, antes de desaparecer. Tinha algo de intimidante naquele lugar. Quase irreal. Ele podia quase jurar que tinha alguma coisa ali e que os espreitavam também.

— Vamos, filho. — O pai percebeu a indecisão dele em continuar. — Vamos pra perto da margem.

Desceram pela ladeira entre as árvores e plantas rasteiras, até chegarem na margem onde havia um pequeno descampado. O pai e os amigos se detiveram e começaram a se preparar para a pescaria, em um pequeno ritual de montar acampamento. Sérgio decidiu cooperar com eles e não só ficar ali olhando para as águas.

Não demorou para que montassem a pequena barraca que trouxeram. Depois encheram um colchão inflável e colocaram dentro dela. Ao lado da barraca, colocaram uma churrasqueira pequena sobre um botijão de gás também pequeno. Pegaram as varas, iscas e colocaram tudo em ordem. Em seguida, se encharcaram de repelente. Tinha, ainda, lanternas, pilhas e verificaram se havia torre para o celular, acessando a internet. Já não se fazem mais pescadores como antigamente, pensou o garoto, estranhando que tivessem trazido todo aquele aparato e ele não percebera. Por quanto tempo esperavam ficar ali?

Nos primeiros momentos, a pescaria seguiu normal. Jogavam as iscas na água, aguardavam que os peixes fisgassem e os recolhiam. Não demorou muito e já tinham um bom número deles, assim um dos homens pegou água no rio em uma bacia plástica, uma faca e começou a limpá-los.

O pai de Sérgio e um outro amigo decidiram ir um pouco mais adiante. O garoto ficou em dúvida se continuava ali ou se ia com eles. Decidiu ficar, porque estando perto da barraca, se ficasse cansando, entraria e acessaria um pouco a internet, deitado no colchão.

Ele estava em dia de sorte para pescaria. Conseguiu fisgar três bons peixes em pouco mais de meia hora. E, para ele, já bastava por enquanto. Jogaria um pouco. Retirou a vara da água, depositou na areia e ainda sentado na margem, ligou o celular no jogo salvo. Ali estava, na tela, a continuação do que jogava em casa. O rapaz do jogo, com a vida recuperada, voltou a fugir de algo que a perseguia e chegou na margem do rio.

— Terminei aqui. Vou até onde o João e seu pai estão. Você vem? — perguntou o rapaz que limpava os peixes.

— Não. Agora não. Vou ficar aqui jogando.

— Eu acho que eles não foram muito longe, não. Qualquer coisa, é só dar um grito.

— Tá bom — respondeu Sérgio, sem prestar muita atenção, concentrado no jogo.

O amigodo pai pegou sua tralha de pesca e se afastou, sumindo no mato. Sérgio ficou sozinho.As águas continuavam seu movimento, sempre sumindo no buraco, mas ele já não asobservava perdido em seu jogo e na perseguição que o herói deste sofria. 


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Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora