20. Volta à escola (parte 2)

227 29 28
                                    


A menina ainda estava curiosa por saber da outra Porãsy, mas não teve coragem de perguntar mais sobre isso, então fez uma pergunta sobre a outra parte da fala dele.

— Você tem mais irmãos, então?

— Somos sete irmãos, no total.

Ai meu Deus! ela pensou e, mais uma vez, seu coração queria sair pela boca. ERA VERDADE! As fofocas nesse sentido eram verdadeiras!

— E são todos homens? São mais novos? Não estudam? Nunca vi nenhum vindo com você.

— Nossa, quantas perguntas — respondeu sorrindo malicioso. — Vamos lá: Tenho quatro irmãos mais velhos e dois mais novos. E não, não estudam. Só o pequenino, o loiro que você já deve ter visto comigo no ônibus, é que estuda.

O pequeno menino loiro era seu irmão. Como poderia, se era tão diferente? Porãsy estava para perguntar se a mãe ou o pai dele era Karaí, mas se conteve. Franziu sua testa confusa. Pela sua voz e olhar, ela sentiu que ele não queria falar dos irmãos. Parecia nervoso demais. Mexeu as pernas e da mochila caiu um frasco de vidro, ou talvez plástico, que ele apanhou no mesmo instante e colocou de novo no lugar, junto a outros dois que ela conseguiu ver.

— Mel? É mel? — ela perguntou, tentando pegar um dos vidros para confirmar.

Ele afastou a mochila do seu alcance de forma brusca e a fechou bem, depositando os braços por cima, como a garantir que ela não tivesse acesso à mochila.

— Sim, é mel — respondeu contrariado. — Estou levando para um dos meus irmãos. Ele segue uma dieta à base de mel, então temos sempre que ter mel em casa.

Dieta a base de mel... Ela nunca havia ouvido falar de nenhuma dieta a base de mel. Ou melhor... e algo relacionado a mel veio, de relance, à sua memória. Como um déjà vu, só que não conseguia se lembrar do que era de fato. Ela franziu mais ainda a testa, estranhando.

— Então você é nova por aqui? — ele quebrou o gelo. — De onde você é?

— Como você sabe que sou nova por aqui? — perguntou ela, se lembrando da visão que tivera em sua aldeia, de um rapaz que ela jurava ser ele.

— As notícias nas aldeias se espalham rápido, você sabe. E na escola também. Sei até que você bateu em um Karaí no seu primeiro dia de aula. Sabia que você foi o comentário principal das conversas, na semana passada? Só que depois você não veio mais... sumiu.

— Estava doente. Meus pais acharam melhor eu faltar até melhorar. Então eu fui o alvo das conversas? Por quê?

— Sim. A menina que voou para cima do rapaz e o esmurrou. — Ele fez o sinal de esmurrar o ar, sorrindo de leve e depois completou como se falasse consigo mesmo: — E foi o que me deu as provas de que eu precisava para confirmar quem era você.

Porãsy achou que não tinha ouvido direito.

— Como é que é? Do que está falando?

— Nada. Deixa pra lá, esquece. Eu às vezes falo demais. — Kauã a olhou por instantes pensando em como mudar de assunto. — De onde vocês vieram?

— Somos de Dourados — Porãsy respondeu bastante desconfiada.

— De qual Aldeia? Jaguapiru, Bororó...

Na cidade de Dourados havia várias aldeias indígenas. As duas principais eram as que ele havia citado: Jaguapiru e Bororó. Essas duas aldeias ficavam dentro da Reserva Indígena de Dourados. Uma reserva pequena em tamanho, mas com uma população muito grande: cerca de quinze mil indígenas.

— Na verdade, de nenhuma dessas — respondeu Porãsy. — Somos do tekoha Apyka'i e como a terra do nosso povo está nas mãos dos fazendeiros, vivemos na beira da estrada.

— Em um acampamento de retomada?

— Isso. Conhece lá?

Ela temeu um pouco ao perguntar se ele conhecia o lugar. Salpicou na sua memória a imagem do rapaz que lhe aparecera no mato, ao lado do córrego. Ela não conseguia tirar de sua cabeça que era ele.

— Mais ou menos — disse, olhando-a nos olhos. — Acho que já vi nos jornais e televisão. Não foi lá que pegou fogo?

— Foi sim — respondeu surpresa.

— Alguém se feriu? Digo... quando aconteceu o acidente.

Desta vez foi Porãsy quem o encarou. Alguma coisa lhe dizia que ele sabia do "acidente" mais do que queria transparecer. Suas palavras soaram falsas para ela. Porãsy o olhou tentando ver mais alguma coisa em sua expressão, que parecia sombria demais.

— Não foi um acidente. O fogo... — ela arquejou indignada ao lembrar da tragédia, deixando transparecer um pouco de raiva na voz. — O fogo não foi um acidente.

Ele silenciou por instantes. Pareceu a Porãsy que pensava no que dizer. Como se escolhesse as palavras, ou mesmo, como se escolhesse que mentira contar. Por fim, ele falou:

— Então vocês não acreditam que foi um acidente como a mídia mostrou? Mas, se não foi acidente, quem poderia ter colocado o fogo? Quem vocês pensam que fez isso?

— Temos muitos inimigos — a menina insistiu, já muito irritada. Não gostava de ser contrariada, nunca, e o rapaz parecia desdenhar do que falava, ou temer sua resposta. — Aquela terra está em disputa há décadas. Nesse tempo os fazendeiros já fizeram de tudo para que saíssemos de lá.

— Ah tá! Os fazendeiros... — De repente, ele pareceu aliviado. — Então vocês acreditam que foram os fazendeiros.

— Eles próprios não. Alguém a mando de um deles ou mesmo de todos eles. Eles têm muitos capangas. Gente disposta a tudo por dinheiro. Eles nos querem fora de lá.

— Entendi. 

><><>

(continua)

Porãsy e o estranho mundo das histórias de seu avô indígenaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora